Anti-copa, anti-eleição & anti-jornalismo
Havia mais gente num ato do Planalto para anunciar condições de trabalho na Copa do que na maioria dos protestos anti-Copa
Só é possível entender a importância atribuída pelos meios de
comunicação aos protestos anti-Copa, ontem, como parte do esforço para
colocar o governo Dilma na defensiva quando faltam cinco meses para a
eleição presidencial. É isso e só isso.
Na maioria dos protestos realizados do país, havia menos gente do que no
Palácio do Planalto, às 15 horas da tarde de ontem, quando o governo,
entidades patronais e as centrais sindicais – inclusive a Força Sindical
– assinaram um acordo pelo trabalho decente durante da Copa do Mundo.
Você pode achar burocrático. Mas veja as consequências práticas.
No final do dia, em Brasília, grandes redes de alimentação e hotéis –
estamos falando de McDonalds e Habibs, Accor, por exemplo – haviam
firmado um acordo que, soube depois, era inédito no mundo.
Um total de 1600 empresas (o plano é chegar a 6000 nas próximas
semanas), que empregam alguns dezenas de milhares de trabalhadores,
firmou um compromisso para a Copa. Reforçar direitos trabalhistas, criar
formas legais de evitar que trabalho temporário seja sinônimo de
trabalho precário e impedir o avanço da exploração sexual de crianças e
adolescentes, tão comum em situação desse tipo.
Sabe a preocupação social? Sabe aquele esforço para impedir que a Copa transforme o país num grande bordel? Pois é.
Você pode até achar que tudo isso é café pequeno diante das imensas
causas e carências do país. É mesmo. Também pode se perguntar para que
falar de iniciativas modestas, limitadas, quando a rua arde em chamas de
pneus revolucionários.
São, definitivamente, iniciativas menos que reformistas, para falar em
linguagem conhecida. Populistas, para usar um termo típico de quem não
tem voto nem consegue comunicar-se com o povo. Eleitoreiras, é claro.
Mas eu acho que os fatos de ontem ensinam muita coisa sobre o Brasil de
hoje.
A menos que se acredite que em 2014 o Brasil se encontra às portas de
uma revolução, numa situação que coloca questões econômicas como a
expropriação dos meios privados de produção e criação de uma república
de conselhos operários e populares, convém admitir que nossos meios de
comunicação resolveram construir um embuste político em torno dos
protestos e apresentar manifestações de rua fracassadas como se fosse um
elemento da realidade.
Não seja Ney Matogrosso: leia os orçamentos, compare os gastos, veja as prioridades. Entre no debate real.
Veja quem defende, a portas fechadas, as “medidas impopulares”. Quem já
se rendeu ao capital financeiro e quer entregar o Banco Central – isto
é, a moeda dos brasileiros – aos mercados, para que possam jogar com
ela, especular, comprar e vender. Não acredite na lorota de austeridade,
de defesa da moeda acima da política e dos interesses sociais em eterno
conflito. O que se quer é mais cassino em vez de mais salário mínimo.
(Quase rimou...)
No cassino está o filé – que é sempre para poucos. E quando alguém falar
no exemplo dos países desenvolvidos, recorde: no mármore da entrada do
FED, o BC americano, está escrito que a instituição tem dois
compromissos – defender a moeda do país e o emprego dos cidadãos. Lá, no
coração do capitalismo, o BC tem essa função – ou missão, como dizem os
RHs de hoje em dia. Toda luta pela independência do Fed consiste em
lutar para revogar o compromisso com a defesa do emprego.
Numa conjuntura pré-eleitoral onde cada rua interrompida, cada pedrada,
cada confronto desnecessário com a polícia e cada pequena labareda
representa um desgaste das instituições políticas construídas
democraticamente no fim da ditadura militar, o que se pretende é atingir
um governo que toma medidas parciais, mas concretas em defesa da
maioria e favorecer uma restauração conservadora. O capítulo final do
embuste -- por isso é embuste -- é este. Criar uma imagem, um borrão, um
ruído, que embaralhe o debate da eleição.
No país real de 2014, as alternativas são duas. E todos sabem quais são.
E é por causa delas que a revolta policial do Recife, ontem, recebeu o
tratamento de um episódio menor e passageiro, não é mesmo?
Na região Sudoeste de São Paulo, ontem, os trabalhadores cruzaram os
braços em seis empresas. Mais tarde, avançaram por uma das pistas da Via
Anchieta e fizeram o protesto por meia hora. Olha a falta de charme
radical-televisivo dessa turma. Olha o tédio concreto de suas
reivindicações. A monotonia. Certíssimo.
Ligados à indústria de autopeças, querem a manutenção do IPI que ajuda a
vender automóveis, até hoje o setor da indústria que possui a cauda
mais longa na produção de empregos diretos e indiretos. No país real,
onde vive a maioria dos brasileiros, uma das prioridades é e sempre foi
esta: emprego, que permite pagar a conta do fim do mês.
A reivindicação dos metalúrgicos não era improvisada. E nada tem a ver
com anti-Copa, movimento que ignoram porque gostam de futebol, não
querem perder a oportunidade de torcer pela seleção brasileira em seu
próprio país e até admitem que os empregos que a Copa criou ajudaram no
orçamento de amigos, parentes e vizinhos.
Os sindicatos querem sentar com os empresários e o governo para discutir
medidas que a CUT e a Força Sindical trouxeram da Alemanha, onde
trabalhadores, empresas e governo repartem custos que ajudam a manter o
emprego mesmo nas situações que a economia esfria – esse tipo de pacto é
um dos motivos que explica a vitória eleitoral de Angela Merkel, que
não aplica contra seu povo a política de austeridade que exige dos
países mais fracos da União Europeia.
No mundo real, vivemos a época do capitalismo rastejante, como definiu
um dos dirigentes políticos de minha juventude. Cada emprego é uma
epopeia, todo benefício social é um suadouro, garantir um horizonte de
segurança para a família é uma utopia.
O que nossos conversadores mais reacionários pretendem é um confronto
com todas as armas – inclusive o embuste -- com um governo que, com
todos os limites, falhas e erros clamorosos, tem conseguido aliviar o
sofrimento dos mais pobres.
Numa fase da história em que a renda se concentra nos principais países
do planeta, gerando uma desigualdade que bons estudiosos indicam como
caminho seguro para novas catástrofes, até mais frequentes, o Brasil
conseguiu avançar na direção contrária. O plano era fazer virar uma
Grécia. Virou... o Brasil.
Vamos lembrar de 1964. Num país polarizado, com um governo que havia
chegado ao limite possível, a revolta dos sargentos, e dos cabos, a
radicalização dos camponeses, a campanha sistemática de denuncia dos
políticos e do Congresso envolvia causas justas e corretas – mas seu
efeito real foi abrir caminho para o golpe de Estado e uma derrota de 20
anos.
Lembrem de 1933, na Alemanha. Convencido de que havia chegado a hora do
assalto ao poder, o Partido Comunista Alemão, orientado por Josef
Stalin, estimulou uma política sectária de denúncia da
social-democracia. Rompeu a unidade dos trabalhadores e passou a acusar
os social-democratas de social-fascistas. O saldo foi Hitler – uma
derrota que só seria revertida pela II Guerra Mundial.
A história mudou bastante, de lá para cá. Mas convém entender que algumas lições permanecem.
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