Ao deixar STF, ministro ficará longe de cenas constrangedoras que aguardam futuro da AP 470
A saída de Joaquim Barbosa do STF representa um alívio para a Justiça do
país e é uma boa notícia para os fundamentos da democracia brasileira.
Abre a oportunidade para a recuperação de noções básicas do sistema
republicano, como a separação entre poderes, e o respeito pelos direitos
humanos – arranhados de forma sistemática no tratamento dispensado aos
réus da Ação Penal 470, inclusive quando eles cumpriam pena de prisão.
Ao aposentar-se, Joaquim Barbosa ficará longe dos grandes
constrangimentos que aguardam “o maior julgamento do século,” o que pode
ser útil na preservação do próprio mito.
Para começar, prevê-se, para breve, a absolvição dos principais réus do
mensalão PSDB-MG, que sequer foram julgados – em primeira instância –
num tribunal de Minas Gerais. Um deles, que embolsou R$ 300 000 do
esquema de Marcos Valério – soma jamais registrada na conta de um
dirigente do PT -- pode até sair candidato ao governo de Estado.
Joaquim deixa o Supremo depois de uma decisão que se transformou em
escândalo jurídico. Num gesto que teve como consequência real manter um
regime de perseguição permanente aos condenados da AP 470, revogou uma
jurisprudência de quinze anos, que permitia a milhares de réus
condenados ao regime semiaberto a trabalhar fora da prisão -- situação
que cedo ou tarde iria incluir José Dirceu, hoje um entre tantos outros
condenados. Mesmo Carlos Ayres Britto, o principal aliado que Joaquim já
fez no STF, fez questão de criticar a decisão. Levada para plenário,
essa medida é vista como uma provável derrota de Joaquim para seus pares
que, longe de expressar qualquer maquinação política de adversários,
apenas reflete o desmonte de sua liderança no STF.
Em outro movimento na mesma direção, o Supremo acaba de modificar as
regras para os próximos julgamentos de políticos. Ao contrário do que se
fez na AP 470 – e só ali -- eles não serão julgados pelo plenário, mas
por turmas em separado do STF. Não haverá câmaras de TV. E, claro:
sempre que não se tratar de um réu com direito a foro privilegiado, a
lei será cumprida e a ninguém será negado o direito de um julgamento em
primeira instância, seguido de pelo menos um novo recurso em caso de
condenação. É o desmembramento, aquele recurso negado apenas aos réus da
AP 470 e que teria impedido, por exemplo, malabarismos jurídicos como a
Teoria do Domínio do Fato, com a qual o Procurador Geral da Republica
tentou sustentar uma denúncia sem provas consistentes contra os
principais réus.
Hoje retratado como uma autoridade inflexível, incapaz de qualquer
gesto inadequado para defender interesses próprios – imagino quantas
vezes sua capa negra será exibida nos próximos dias, num previsível
efeito dramático – Joaquim chegou ao STF pelo caminho comum da maioria
dos mortais. Fez campanha.
Quando duas aguerridas parlamentares da esquerda do PT – Luciana Genro e
Heloísa Helena – ameaçaram subir à tribuna do Congresso para denunciar
um caso de agressão de Joaquim a sua ex-mulher, ocorrido muitos anos
antes da indicação, quando o casal discutia a separação, o presidente do
partido José Genoíno (condenado a seis anos na AP 470) correu em defesa
do candidato ao Supremo. Argumentou que a indicação representava um
avanço importante na vitória contra o preconceito racial e convenceu as
duas parlamentares. (Dez anos depois desse gesto, favorável a um cidadão
que sequer conhecia, Joaquim formou sucessivas juntas médicas para
examinar o cardiopata Genoíno. Uma delas autorizou a suspensão da prisão
domiciliar obtida na Justiça).
O diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato (condenado a 12 anos na
AP 470) foi procurado para dar apoio, pedindo a Gilberto Carvalho que
falasse de seu nome junto a Lula. José Dirceu (condenado a 10 anos e dez
meses, reduzidos para sete contra a vontade de Joaquim), também recebeu
pedido de apoio. Dezenas – um deputado petista diz que eram centenas –
de cartas de movimentos contra o racismo foram enviadas ao gabinete de
Lula, em defesa de Joaquim. Assim seu nome atropelou outros juristas
negros – inclusive um membro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos
Alberto Reis de Paula – que tinha apoio de Nelson Jobim para ficar com a
vaga.
Quando a nomeação enfim saiu, Lula resolveu convidar Joaquim para
acompanha-lo numa viagem presidencial a África. O novo ministro recusou.
Não queria ser uma peça de marketing, explicou, numa entrevista a
Roberto dÁvila. Era uma referência desrespeitosa, já que a África foi,
efetivamente, um elemento importante da diplomacia brasileira a partir
do governo Lula, que ali abriu embaixadas e estabeleceu novas relações
comerciais e diplomáticas.
De qualquer modo, se era marketing convidar um ministro negro para ir à
África, por que não recusar a mesma assinatura da mesma autoridade que o
indicou para o Supremo?
À frente da AP 470, Joaquim Barbosa jamais se colocou na posição
equilibrada que se espera de um juiz. Não pesou os dois lados, não
comparou argumentos.
Através do inquérito 2474, manteve em sigilo fatos novos que poderiam
embaralhar o trabalho da acusação e que sequer chegaram ao conhecimento
do plenário do STF – como se fosse correto selecionar elementos de
realidade que interessam a denúncia, e desprezar aqueles que poderiam,
legitimamente, beneficiar os réus. Assumiu o papel de inquisidor,
capaz de tentar destruir, pela via do judiciário, aquilo que os
adversários do governo se mostravam incapazes de obter pelas urnas.
Ao verificar que o ministro era capaz de se voltar em fúria absoluta
contra as forças políticas que lhe deram sustentação para chegasse a
mais alta corte do país, os adversários da véspera esqueceram por um
minuto as desconfianças iniciais, as críticas ao sistema de cotas e
todas as políticas compensatórias baseadas em raça.
Passaram a dizer, como repete Eliane Cantanhede na Folha hoje, que
Joaquim rebelou-se contra o papel de “negro dócil e agradecido.”
Rebelião contra quem mesmo? Contra o quê? A favor de quem?
Já vimos e logo veremos.
Basta prestar atenção nos sorrisos e fotografias da campanha presidencial.
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