Por Rodrigo Vianna, no blog Escrevinhador:
Marina Silva, em crescimento vertiginoso segundo todas as
pesquisas(bobagem achar que estejam todas erradas), não é um raio em céu
azul. Não é um acidente de percurso.
Ela representa a restauração conservadora. Ela oferece um rosto para a
“não-política” que explodiu em junho de 2013. Mas que vem de longe…
Como já escrevi aqui, Marina tem uma trajetória respeitável e em muitos
momentos lutou contra as injustiças no Brasil. Mas quem conhece meia
dúzia de livros de História sabe que os indivíduos nunca são aquilo que
gostariam ou que afirmam ser. Muitas vezes, no meio do turbilhão da
história, acabam por cumprir um papel em tudo diverso do que haviam
reservado para si mesmos.
Marina pode bater no peito e dizer: “sou o novo”. Não é. Infelizmente,
ela cumpre nessa eleição, nesse momento histórico, um outro papel.
“Marina, tu costeaste o alambrado”, diria o velho Brizola. Costeou o
alambrado, passou para o outro lado. Assumiu o programa do desemprego
tucano, virou um cruzamento “exótico” de FHC com o pastor Malafia.
Sequestrada pelos ultraliberais na economia (a Neca do Itaú e os tucanos
de bico colorido vão mandar na economia num provável governo
marineiro), e pelos ultraconservadores nos costumes, Marina significaria
um passo atrás gigantesco na economia, na política, nos direitos
humanos.
Lula também cedeu: negociou, fez a Carta aos Brasileiros. Mas tinha com
ele um campo político, orgânico, robustecido por 30 anos de lutas.
Marina é o bloco do “eu e os bons”. Risco também para a Democracia. Lula
negociou para implantar (pelo menos em parte) um programa de
centro-esquerda. Marina cedeu (e mudou de lado) para ser ela própria a
comandante do bloco conservador. Há uma diferença considerável.
A essa altura, Marina coloca-se mesmo à direita de Aécio Neves.
Patrocinada pelo Itáu, ela apóia a autonomia completa do Banco Central
(nem os tucanos com Armínio Fraga ousam ir tão longe), para atender aos
interesses dos banqueiros e investidores. Aliada a lideranças do
submundo religioso, rechaça os direitos de homossexuais e abandona a
defesa do mundo LGBT. Parceira dos que pretendem enterrar o Mercosul e a
Celac, ataca o que chama de “bolivarianismo” e rende-se aos interesses
dos Estados Unidos – propondo que se paralise o projeto do Pré-sal.
Por tudo isso, Marina é hoje a adversária mais perigosa dos
trabalhadores e de quem aposta na redução das desigualdades e
injustiças. Não só na eleição, mas a médio e longo prazos. Marina não é
só uma candidatura, mas um projeto que precisa ser enfrentado e
derrotado: agora, nas urnas; ou depois, se ela eventualmente chegar ao
poder.
Quem acredita que o voto em Marina significa a “nova” política precisa
olhar o mapa eleitoral nos estados. Nova política vai levar Garotinho ao
poder no Rio e Alckmin em São Paulo? Não. Marina é o velho escondido
sob o manto do novo.
É curioso notar: ao contrário de 1989, quando os adeptos de Collor
estavam nas ruas usando seus adesivos e bandeiras, Marina avança quase
em silêncio. Parece um voto de protesto. Mas suponho que seja mais que
isso.
Na entrevista de Lula aos blogueiros, em abril, perguntei se o PT não
havia falhado, ao abrir mão do combate simbólico. E Lula: “mas você quer
mais simbolismo do que eleger um operário e uma mulher para a
presidência?”. Sim, Lula, foi pouco. Enquanto o PT operava mudanças
importantes (mas parciais, insuficientes), o discurso conservador
avançava pelas profundezas. Na guerra dos símbolos, a esquerda perdeu
feio. Só que na hora da decisão, não há um tucano ou um demo, mas uma
ex-petista travestida de “novo”, pronta para realizar o serviço.
O PT teve sua imagem arrasada num combate permanente. Claro, cometeu
também muitos erros. Mas nenhum outro partido foi tão atacado. Não é à
toa: o PT era um símbolo a ser destruído. Dilma (apesar da firmeza para
enfrentar o mercado financeiro e os EUA) parece fraca para reagir
sozinha: isolou-se, centralizou decisões, absteve-se da política. Sobrou
Lula, que a partir de 2015 terá sua cabeça colocada a prêmio.
A direita fatiou Lula/Dilma/PT em três pedaços, e fez o combate
separadamente. Até agora, vem dando resultado. A derrota de Dilma seria a
derrota do projeto lulista, mas seria mais que isso.
O historiador Fernand Braudel tem uma metáfora bonita para falar desses
movimentos quase invisíveis nas sociedades: enquanto na superfície do
mar observamos a espuma, é nas profundezas que as grandes correntes
desenham movimentos de “longa duração”.
Marina representa um somatório de movimentos desse tipo. Se ganhar a
eleição (e hoje é franca favorita), a ideia da Política como contraponto
ao Mercado (foi esse contraponto que garantiu todos os direitos sociais
e políticos para os pobres e para os trabalhadores ao longo do século
XX) terá sido derrotada nas urnas. A própria ideia de que o espaço
público deve estar governado pelo primado da razão sairá derrotada por
uma candidata que pratica a “roleta bíblica” antes de tomar decisões
políticas, e que no último debate no SBT atacou a política feita de modo
“cartesiano” (ou seja, sob o domínio da razão).
Movimentos irracionalistas, anti-razão, já deram as caras na história do Ocidente mais de uma vez. E isso sempre acabou mal.
Se Marina vencer, o pensamento progressista (e não só o PT) terá sido
derrotado de forma ampla. O “velho” vai mostrar as garras. Algumas
ideias centrais do campo progressista serão derrotadas pela candidata da
“nova” política. Vejamos…
1) A ideia de que os menos favorecidos podem (e devem) se organizar em
sindicatos, partidos e movimentos para obter conquistas coletivas terá
sido derrotada pelo discurso do “fora partidos” e do “viva a nova
política”.
A campanha midiática antipolítica vem de longe, e explodiu nas ruas em
junho de 2013. Mas vejam que a longa campanha tem um endereço claro:
enfraquecer, ou liquidar se assim fosse possível, qualquer organização
popular (ou de esquerda). A criminalização da política é uma
criminalização da esquerda (e isso eu vi a rua, na avenida Paulista em
2013, quando hordas de extrema-direita tentavam agredir jovens com
camisa do PSOL e do PSTU, dizendo que eram “petralhas”, “comunas de
merda”). Marina aproveita-se desse discurso, insufla, incentiva e colhe
os resultados desse discurso.
2) A ideia de que há interesses divergentes na sociedade e que nem
sempre é possível acolher a todos terá sido derrotada. Luciana Genro
(PSOL) disse isso a Marina num debate: “de que lado você está, Marina?”.
A história de governar com “os bons” de todos os partidos é autoritária
(quem escolhe os “bons”?) e mascara os conflitos. Num governo Marina,
movimentos sociais serão ainda mais criminalizados como aqueles que não
enxergam a “nova política” em que “Neca Setubal e Chico Mendes são elite
do mesmo jeito” (frase de Marina, a revelar – num lapso quase freudiano
– o que ela representa de fato).
3) O conservadorismo nos costumes terá avançado mais. Marina recusa-se a
defender lei contra a homofobia porque é preciso resguardar o “direito
individual” de quem pensa diferente. Parece o Partido Republicano dos
EUA. Mas não é só isso. O mesmo conservadorismo que domina a TV aberta
com programas policialescos no fim de tarde – e que leva milhares de
cidadãos (inclusive os mais pobres e mais vulneráveis) a defenderem a
polícia que “prende e arrebenta” – de certa forma ganha a batalha das
ideias.
O PT e boa parte dos tucanos históricos (hoje o PSDB, que já foi de
Montoro e Covas, abriga em seus quadros policiais matadores, num claro
giro à direita) representam uma espécie de anteparo a esse discurso da
barbárie. Marina acaba (em parte) caudatória do eleitorado que nos
grandes centros urbanos apóia esse discurso.
Marina, como disse lá na abertura, é parte de um processo de restauração
conservadora. Da mesma forma que o cerco a Vargas em 54 e a eleição de
Janio em 1960 eram parte do mesmo processo que terminaria com o golpe de
1964.
Só que Marina transforma esse processo em algo fluido, difícil de ser
detectado pela massa de eleitores suscetível ao discurso da
antipolítica.
A direita tem um rosto. É o rosto de Marina. Lamento, mas foi o papel que ela escolheu representar.
Vai ganhar? Hoje, é o mais provável. Os argumentos que expus acima
poderiam levar a derrotá-la. Mas temo que não haja tempo. Dez anos de
anti-política e conservadorismo subterrâneos não se combatem em um mês
ou dois.
De toda forma, a batalha agora é necessária. Quem acha que o
conservadorismo precisa ser enfrentado de frente deve se contrapor a
essa onda marineira: para ganhar ou perder. Depois das urnas, a vida
segue, e o combate será ainda mais duro.
Postado há 4 hours ago por Blog Justiceira de Esquerda
Do Blog Justiceira de Esquerda.
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