O julgamento do mensalão não foi apenas algo fora da curva. Foi uma afronta à retidão
“Um ponto fora da curva”. Foi assim que o Ministro Barroso, do STF, definiu a AP 470 em sua sabatina no Senado.
O então candidato à nossa suprema corte foi elegante, como sempre.
Talvez demasiadamente. Muitos consideram que a sua definição é apenas um
eufemismo para coisa bem mais grave.
Com efeito, a AP 470 já tinha começado torta, fora da curva, com a
negativa do desmembramento, e está terminando com uma série de
irregularidades destinadas a propiciar um espetáculo midiático, com a
humilhação pública dos acusados. Um final convenientemente distorcido
para um começo torto.
Entre um e outro ocorreu de tudo: timing político-eleitoral das
condenações, acusações sem provas, humilhações públicas do Ministro
Lewandowski, declarações políticas em votos que deveriam espelhar a
imparcialidade da justiça e, last but not least, a transformação do
domínio do fato na tirania da hipótese pré-estabelecida.
Assim sendo, ponto fora da curva é pouco. Não foi apenas algo fora da
curva. Foi afronta à retidão. Não foi mera exceção. Foi julgamento de
exceção. Ou praticamente isso.
Fez-se justiça? Não, não se fez justiça. Justiça pressupõe equilíbrio e,
sobretudo, imparcialidade. Não houve nem uma coisa nem outra. Justiça e
procuradores que prendem Genoino, um homem doente e sem posses, mas que
sequer investigam fatos muito mais graves e bem mais polpudos que um
mero exemplo do usual caixa dois de campanha, esquecendo-os dentro de
providenciais gavetas, não parecem imparciais. Tampouco equilibrados. As
condenações da AP 470 excedem bastante os ilícitos que efetivamente
foram comprovados.
O julgamento deixou algum legado positivo? Não. Ao contrário do que
alguns disseram, a AP 470 não inaugura uma nova era de “poderosos na
cadeia”. Só os mais rematados panglossianos, aqueles que vivem dizendo
que o mensalão é o maior escândalo de corrupção da história do Brasil,
poderiam acreditar que o “julgamento” teve como propósito real o combate
efetivo à corrupção e à impunidade. Os verdadeiramente poderosos,
aqueles que tradicionalmente fazem a ponte entre o poder econômico e o
poder político, continuarão a desfrutar da sua também tradicional
impunidade, assegurada pelas gavetas oportunas e pela óbvia parcialidade
daquilo que Gramsci denominava de “o partido do capital”.
Entretanto, para aqueles que não fazem parte desse seleto grupo, ou que
não contam com sua simpatia, a AP 470 criou um precedente perigoso. A
menor suspeita, a mais ínfima ofensa poderá agora ser draconianamente
punida com penas elevadas, com domínio do fato e sem provas cabais. É o
predomínio das conveniências políticas sobre os direitos fundamentais. É
a definitiva “judicialização” da política, ou a politização da justiça,
como queiram. Nesse sentido, o “julgamento” enfraqueceu o Estado de
Direito.
Porém, isso não é o mais preocupante. Na realidade, o que preocupa mais é
que esse “ponto fora da curva” representa sintoma de algo
consideravelmente mais grave: a radicalização do processo político no
Brasil e a deturpação de nossa democracia.
Basta ver a repercussão da AP 470 na mídia e na internet para ver que
algo está profundamente errado no país. A caixa de Pandora aberta nas
redes sociais revela um bestiário atemorizante. O ódio ao PT, aos
“mensaleiros” e à esquerda em geral se mistura à indignação seletiva e
oportunista para compor um quadro de radicalização à direita que lembra a
Munique dos anos 20 ou o Rio de Janeiro de 1964. Sem exageros.
Nas eleições de 2010, já tínhamos visto uma avant-première desse
protofascismo impudico. Naquele ano, a candidatura conservadora assumiu
claros ares de um Tea Party tupiniquim, com direito à mistura de
fundamentalismo religioso com ressentimento político. No entanto, agora a
coisa parece ter saído definitivamente de controle. O ódio ao PT e ao
seu governo atingiu um paroxismo vulcânico, com uivadas promessas de
“varrer”, de “acabar”, de “exterminar” com a “raça de petistas e
comunistas”.
O irônico é que todo esse ressentimento não foi provocado por um mau
governo, mas pelo fenômeno contrário: o PT, “penetra” na estrutura do
poder no Brasil, fez e faz, em linhas gerais, um governo muito bom, que
rende aos seus titulares índices de popularidade bem superiores aos de
seus antigos adversários. O “penetra” virou a estrela da festa. Isso é
imperdoável.
Evidentemente, tal ressentimento, tal ódio destrutivo, não preocuparia
se ficasse restrito às miasmas digitais. Contudo, ele se espraia
vitoriosamente pela mídia, pelos partidos de oposição e até mesmo por
algumas instituições importantes para a democracia. O STF não parece
exceção.
O nosso sistema político está hoje contaminado por essa nova cultura do
ressentimento, que não identifica adversários a serem eventualmente
superados em debates e pleitos eleitorais, mas inimigos que precisam ser
exterminados a qualquer custo. Recentemente, uma conhecida
pré-candidata, em tese adepta de uma “nova política”, teria afirmado que
seu objetivo principal era “acabar com o PT e o chavismo que tomou
conta do Brasil”. Brave new politics.
Esse fenômeno é muito inquietante. A democracia tem a capacidade de
conviver bem com as diferenças e de intermediar conflitos de interesses.
Ralf Dahrendorf, grande teórico do conflito, afirmava que tal
capacidade de conviver com os embates era a grande fortaleza das
modernas democracias. Contudo, esse novo radicalismo à droit, que impede
o diálogo e a convivência democrática com o conflito de interesses,
tende a ressuscitar o anacrônico golpismo, sob inéditas roupagens.
Na América Latina, as recentes experiências de governos de
centro-esquerda têm levado, em alguns casos, a tentativas, bem-sucedidas
ou não, de golpes de Estado “constitucionais” e “jurídicos” e a um
clima permanente de tensão que compromete a governabilidade e a
convivência democrática entre forças políticas adversárias O Brasil
parecia infenso a essa tendência. Não parece ser mais o caso. Não há
golpe à vista, mas a saudável convivência com as divergências e as
diferenças foi substituída por essa patologia política.
Nesse quadro, há uma clara degradação da democracia brasileira e um
evidente rebaixamento do debate político. Na ausência de propostas
alternativas às do governo atual, algumas forças de oposição, dentro e
fora do Congresso, se limitam a gritar o vazio moralista de um
neoudenismo casuístico. Esse filme é velho. Seu final também.
A política brasileira está num perigoso ponto fora da curva da saudável
democracia. Há gente que, embora deteste o “chavismo”, vem se esforçando
para que o processo político brasileiro se iguale ao da Venezuela.
O ano de 2014 está chegando. Teremos um novo teste para a nossa
democracia. Seria bom que todas as forças democráticas voltassem a
debater, em alto nível (alguém se lembra disso?), os destinos do país,
em vez de se digladiarem em torno de uma paupérrima e estéril agenda de
delegacia de polícia. A reforma política seria um bom começo.
Afinal, quem quer que resulte vitorioso em 2014 será obrigado a fazer
coalizões, a repartir cargos e responsabilidades e a conviver
democraticamente com a oposição. Com domínio do fato e tudo o mais.
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