Prisão no 1º de maio
"Só não me venham com mentiras", reagiu Maria
Laiz, mãe de Genoíno, quando soube da volta do filho a prisão.
A prisão de José Genoíno é um novo sinal político. Só
durante a ditadura os militantes do movimento operário eram presos no 1º de maio. Depois disso, a data era respeitada.
Havia um compromisso tácito, um respeito por aqueles milhões de brasileiros que
ajudaram a transformar o país numa democracia.
A primeira a
perceber o que se passava foi Maria Laiz Nobre Guimarães. Aos 89 anos, ela acompanhou
o noticiário sobre a volta do primogênito à Papuda pela TV parabólica da casa
onde mora, em Encantado, no interior do Ceará. Quando atendeu ao telefone,
ficou com receio de que tentassem amenizar sua dor:
--Só não me venha com mentiras, meu filho, disse ao deputado
José Guimarães, irmão de Genoíno.
Genoíno retornou a
Papuda no 1º de maio, data histórica dos
trabalhadores, depois de ter sido preso pela primeira vez em 1º 5 de novembro,
da República.
Justo Genoíno, que
tentou organizar trabalhadores rurais no Araguaia, onde seu partido, o PC do B,
queria montar uma guerrilha contra a ditadura militar. Que foi torturado. Que
ajudou a aprovar as principais leis a favor dos assalariados no Congresso, onde
foi uma das lideranças mais importantes desde a democratização. Que ajudou a
incluir cláusulas democráticas na Constituição.
(E que continuou
vivendo com a dignidade de seus vencimentos de parlamentar num sobrado comprado
com financiamento da Caixa na Vila Indiana, Zona Oeste de São Paulo).
Veja só. Ele foi
condenado por corrupção ativa e cumpre pena de quatro anos e oito meses.
Genoíno embolsou algum no esquema? Nem um centavo. Colocou a mão em algum
trocado? Não. Entregou para alguém? Assinou os empréstimos do PT. Sabe o que a
PF concluiu? Que foram empréstimos legítimos, entregues ao partido.
Este é o corrupto
preso do 1º de maio.
Como disse dona
Maria Laiz: “só não me venha com mentiras, meu filho.”.
É mais engraçado
do que isso.
Pimenta da Veiga,
um dos fundadores do PSDB, ministro das Comunicações no segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso, é hoje candidato ao governo de Minas Gerais.
A Polícia Federal
informa, desde 2006 – está lá, no inquérito 2474 que ficou escondido dos
ministros do STF até o julgamento da AP 470 -- que Pimenta da Veiga recebeu R$
300 000 das agências de Marcos Valério.
Até agora,
Pimenta não foi julgado nem condenado. Já colheu um benefício: o tempo trabalha
para ele. A PF encontrou zero centavo a mais na conta de José Genoíno. Também
apurou as contas de familiares – e nada. O ministério público atesta sua
honestidade. Admite isso.
Mas ele voltou a Papuda, ontem.
O dinheiro caiu na conta de Pimenta da Veiga muitos meses
antes de várias remessas da AP 470. Seu valor é maior até do que os R$ 296 000
que Henrique Pizzolato mandou um auxiliar buscar no Banco Rural. Como já
lembrei aqui, é seis vezes maior que os R$ 50 000 que João Paulo recebeu na
mesma instituição. João Paulo disse que usou o dinheiro para fazer pesquisas
eleitorais e até encontrou uma testemunha para confirmar a história. Pizzolato
garante que não colocou a mão no dinheiro e mandou para o PT. Acredite você no
que quiser. A quebra do sigilo fiscal e bancário de Pizzolato não conseguiu
demonstrar que ele mentia.
Pimenta da Veiga,
ao contrário de Pizzolato e de João Paulo, admitiu que o dinheiro foi para ele.
Explicou que eram honorários advocatícios.
Ao contrário de
João Paulo, não apresentou documentos para provar o que dizia além de sua
própria palavra. Quando os policiais
perguntaram qual era a causa que poderia justificar honorários tão bons,
Pimenta alegou que fizera serviços internos para as agencias de Marcos Valério.
Ele, que acabara de deixar o ministério das Comunicações, três meses antes do
dinheiro entrar na conta, já estava advogando para as agências do valerioduto.
Em serviços internos.
Recebeu um
dinheiro que, com algum reforço, daria para Genoíno comprar uma casa ao lado da
sua.
Se um dia Pimenta
da Veiga se tornar réu, terá assegurado o direito a um julgamento em segunda
instância. Se tudo der errado, dará certo para ele.
Terá muito mais
chances de provar seus pontos de vista. É o correto.
Pela idade, tem 100% de chances de escapar das penas a que
eventualmente venha ser condenado porque já terá completado 70 anos, quando a
denúncia – se for feita – estará prescrita. Olha outro momento de sorte. Outro
azar de Genoíno. Ele completa 68 anos amanhã, na cadeia.
Pimenta recebeu o dinheiro no início de 2003, meses depois
de deixar o ministério. Mesmo assim, está enquadrado no mensalão mineiro, que é
de 1998. Deve ser um milagre de denúncia retroativa.
Confesso não
saber se Pimenta é culpado de alguma coisa. Acho errado pré-condenar qualquer
pessoa. Ele tem o direito de ser tratado como inocente, até que se prove o
contrário.
A discussão política, contudo, é útil.
Numa tentativa
tosca para justificar o retorno de Genoíno a prisão, Joaquim Barbosa praticou
um truque demagógico manjado. Apresentou estatísticas que mostram o elevado
número de prisioneiros que têm doenças semelhantes à de Genoíno e nem por isso
cumprem regime domiciliar.
É um truque que se
utiliza de dados verdadeiros para sustentar teses falsas quando é conveniente.
Não vamos lembrar os muitos momentos históricos em que isso foi feito porque
seria muito constrangedor. Basta dizer que seu efeito é estimular o
ressentimento e não a vontade de Justiça.
Numa homenagem ao 1º de maio, não custa lembrar um episódio comum
sob a ditadura militar. Sempre que os trabalhadores faziam greve, os amiguinhos
dos generais na política e na imprensa diziam que os sindicatos eram egoístas,
queriam dar aumento para quem já ganhava bem, tinha carteira assinada, enquanto
a maioria do povo vivia na miséria. Entendeu, né? É por isso que aos 89 anos
dona Maria Laiz sempre avisa que não quer ouvir mentiras.
Este mesmo
raciocínio se tenta aplicar hoje contra Genoíno. Todo mundo sabe que ele sofre
de uma cardiopatia grave, ainda que controlada. A mortalidade de sua doença é
alta, ainda que sua cirurgia de implante de um tubo de PVC no peito tenha sido
feita pelos melhores médicos do país.
Qualquer médico
sabe que ele estará melhor em casa, em situação de melhor conforto e cuidado,
do que num presídio. Os médicos que examinaram Genoíno discordam sobre a conveniência
de enviá-lo para a Papuda.
A maioria dos
médicos que examinou Genoino deixou claro, por vias claras ou indiretas, que as
condições de tratamento em casa são melhores. Elas ajudam a explicar sua
recuperação. É sintomático que ninguém tenha ficado surpreso com o fato de que
Joaquim Barbosa tenha optado pelo laudo mais favorável ao encarceramento. Medicina?
Não. Política.
Numa atitude
correta, mas cuja razão de fundo é fácil de adivinhar, Joaquim autorizou o
médico de Genoíno a entrar na Papuda a qualquer momento.
Se milhares de
prisioneiros, com problemas de saúde equivalentes, não conseguem cumprir prisão
em regime domiciliar, embora tenham o mesmo direito, a responsabilidade é do
sistema prisional, do Estado, quem sabe até do presidente do STF ou mesmo do
ministro da Justiça. Só não pode ser imputada a Genoíno, certo?
O médico
particular de Genoíno mediu sua coagulação e prova, com base em laudos do
laboratório Sabin, um dos mais respeitados de Brasília, que seus índices estão
abaixo da média recomendável. O índice de é de 1,7, enquanto o recomendável
fica entre 2 e 3.
Os outros
prisioneiros-pacientes da Papuda têm o mesmo atendimento? Têm o mesmo médico? É
claro que não. Infelizmente.
Da mesma forma,
poucos brasileiros com dores lombares terríveis têm direito a um tratamento
caro e sofisticado para amenizar seu sofrimento. Joaquim Barbosa teve, com
recursos pagos pelo contribuinte. Tirou licenças tão prolongadas no seu
trabalho que chegou a ser criticado publicamente por colegas. Descobriu
clínicas modernas, tratamentos de vanguarda.
Está errado? Não.
É um direito dos ministros do Supremo.
A desigualdade
estrutural de um país não impede nenhuma pessoa de fazer o que tiver a seu
alcance – dentro da lei -- para defender seus direitos.
É errado culpar
um indivíduo pelo conjunto de mazelas de uma sociedade. É uma espécie de
covardia retroativa. Um dos mais eruditos juízes da Suprema Corte dos Estados
Unidos, Antônio Scalia, de insuspeitas credenciais conservadoras, deu uma lição
inestimável para o debate desses casos.
Lembrou que
ninguém pode ser responsabilizado individualmente pelos erros das gerações
passadas.
Num debate sério,
produtivo, Genoíno deveria ser comparado com pessoas de condição equivalente.
Por exemplo, Pimenta da Veiga.
O problema aí é um efeito desagradável. Na condição de
relator da AP 470, Joaquim Barbosa foi um dos responsáveis, ao lado do
procurador geral Antônio Fernando de Souza, de manter o laudo 2474 em segredo
de Justiça – e ali aparecia o curioso pagamento a Pimenta da Veiga.
O ministro do STF
Celso de Mello chegou a cobrar, em tom indignado, que o 2474 fosse exibido aos
ministros, antes do julgamento. Joaquim se negou. Disse que não traria maiores
novidades. Alegou que poderia provocar novos atrasos. Foi uma pena.
Na época ninguém estava prestando a devida atenção ao
julgamento. A maioria dos observadores apenas engrossava o coro de “Morte aos
cães!” que eles tanto condenavam quando era ouvido em tribunais stalinistas.
Mas seria curioso tomar conhecimento de casos fora do roteiro do “maior
espetáculo da terra.”.
Imagine se, por
acaso, alguém entrasse na página 179 do Relatório da Polícia Federal,
incluído no inquérito, e encontrasse o dinheiro para Pimenta da Veiga.
Quinze
vezes mais do que o dinheiro recebido pelo professor Luizinho que, após oito
anos de massacre midiático, foi inocentado.
Genoíno pode, sim,
ser julgado por seus atos e por suas ações políticas no presente. E aí vamos
combinar que poucos cidadãos brasileiros – dentro ou fora prisão – construíram
uma folha de serviços tão respeitável na luta contra a desigualdade e pelo
progresso dos mais pobres.
A postura
combativa mesmo na prisão lhe gerou punições suplementares quando Genoíno
organizou um protesto pela morte de Vladimir Herzog, o jornalista assassinado
no porão pela atividade militante no PCB, em 1975. Estimulados por Genoíno,
os presos batiam nas grades, gritavam o nome de Herzog, faziam todo barulho que
conseguiam. Por causa disso, Genoíno foi punido e enviado para o Ceará, onde
teve de cumprir parte de usa pena. Saiu arrastado da cela.
São cenas
corajosas, que ajudam a mostrar quem é quem e quem se tornou quem, 39 anos
depois. Que tristeza. Um assessor do PPS, sigla que herdou o espólio do PCB, é
o principal suspeito de cometer um ato lamentável de provocação na Papuda: a
filmagens clandestina de Dirceu enviada aos jornais. Na mesma ocasião se disse
que a cela de Dirceu – a mesma que Genoíno ocupa desde ontem – oferece banho
quente aos detentos. Mentira. Canalhice. A água é fria, como de toda a Papuda –
mas, no clima de estimular o ressentimento, a falsa notícia foi até manchete de
jornais. Falando nisso: água quente é luxo?
Essa é a diferença,
que salta aos olhos no 1º de maio.
-- Não me venha com
mentiras, meu filho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário