Luciano Martins Costa, Observatório da Imprensa
"O enterro da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, linchada no sábado
(3/5) num bairro de Guarujá, litoral paulista, mantém no noticiário o
festival de horrores composto pelo crime bárbaro em si e por
interpretações apressadas e tendenciosas dos jornais.
Compreende-se o espanto produzido neste lado da sociedade, que se
acredita detentor de razão e sensibilidade, pelo conhecimento dos
detalhes que seguem as narrativas sobre o crime. Mas é preciso registrar
que a imprensa passa ao largo de questões centrais na análise do
acontecimento, e não resiste à tentação de politizar a tragédia. O papel
e a tela aceitam quase tudo, então, dá-se um jeitinho de incluir o
embate eleitoral nas entrelinhas do material jornalístico sobre o crime
hediondo.
Na Folha de S.Paulo, o editorial de quarta-feira (7/5) afirma
que “não se trata apenas de obscurantismo atávico, já em si lamentável,
mas de sintoma do imenso atraso que caracteriza o Estado brasileiro”. No
Globo, a arenga sobre uma suposta “percepção popular” da
falência de instituições dá um jeito de vincular o linchamento ao
“péssimo exemplo dado por partidos políticos, do PT ao PSDB, pelo
envolvimento de correligionários em casos de corrupção”. Ora, diria o
comediante, só o PT e o PSDB? Cadê os outros?
Trata-se, na verdade, de um preâmbulo para o discurso que tem marcado a
imprensa brasileira na última década: “O mau exemplo do PT chega a ser
mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema
seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente
da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da
população diante dos poderes constituídos”, conclui o editorial.
Pronto: dá-se um jeito de jogar no colo do Partido dos Trabalhadores –
e, por lógica extensão, da presidente da República que vai tentar a
reeleição –, a culpa pelo linchamento de dona Fabiane Maria de Jesus.
Seria o caso de se perguntar ao editorialista da Folha qual seria a relação entre o crime do Guarujá e o suposto “atraso” do Estado brasileiro, mas não convém analisar o texto do Globo, porque já não se trata de jornalismo, mas de panfletagem pura e simples.
Mergulho no obscurantismo
Seria desrespeitoso considerar que os profissionais responsáveis pelos
textos citados padecem de ignorância sobre fenômenos como o do
linchamento. A mesma imprensa que comete essa atrocidade contra a razão,
ao inserir suas preferências políticas no cenário da barbárie, cita
pesquisadores que relatam a banalidade de fatos como esse no Brasil
moderno: em entrevista ao Estado de S.Paulo, o sociólogo José de Souza Martins diz ter catalogado 2 mil casos de linchamento nos últimos 30 anos.
Os jornais não encontraram nenhuma condenação da Justiça para os
acusados desses crimes, porque ele não é tipificado no Código Penal e,
no meio do distúrbio, torna-se impossível definir quem deu a paulada ou
quem atirou a pedra que causou a morte da vítima.
Mais plausível é observar como a imprensa atua contra o sistema
democrático ao conectar qualquer evento negativo, seja o linchamento,
seja o torcedor morto por um criminoso que atirou um vaso sanitário do
alto do estádio, a uma suposta “falência do Estado” – e, imediatamente,
apontando para o partido que ocupa o governo federal.
Ao repetir o bordão segundo o qual vivemos em regime de anarquia,
afirmando que há uma “percepção popular da falência de instituições”, os
jornais estão estimulando o vandalismo e as soluções fora da lei,
justificando as mentes insanas que se julgam no direito de impor à
sociedade o fruto de seus delírios de “justiçamento”.
Recentemente, um assassino entrevistado num desses programas policiais
da televisão, disse que havia atirado no desafeto porque ele era
“folgado”. Ora, isso nada tem a ver com o Estado de hoje, mas com o
Estado histórico. Tem a ver com a permanência de bolsões de miséria,
onde o lumpesinato vive sua rotina desumana. Se houve alguma mudança
nesse cenário nas últimas décadas, ela se deve justamente às políticas
sociais que vêm reduzindo a miséria.
Não se salta da aldeia medieval para a aldeia global por decreto, mas é
fácil entender que, numa sociedade em transição, a modernidade tem que
conviver com a barbárie.
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