Joaquim Barbosa é um homem mau, mas sua maldade não é delirante, nem
fora de controle. É calculada, planejada e medida. Sabe aonde quer
chegar e age com senso de estratégia.
O retorno de Delúbio Soares a Papuda, sem direito ao trabalho externo,
não permite qualquer dúvida. Depois do retorno provável de outros
condenados, o próximo da lista é você.
Ao revogar uma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vigor
desde 1999, quatro anos antes de ele próprio ser nomeado para uma
cadeira no STF, Joaquim Barbosa criou uma situação nova, que atinge
todos nós. Confirmou a disposição de administrar a Justiça brasileira
com métodos de ditador.
Ninguém com mais de 21 anos de idade, vacinado, em pleno gozo de suas
faculdades mentais, tem o direito de imaginar que se trata de um caso
isolado, limitado a duas dezenas e meia de pessoas.
Estamos falando da Justiça sob encomenda, aquela que se pratica para
atingir um alvo político, adaptando todos os meios disponíveis para
chegar aos objetivos necessários. Você pode chamar isso de "maior
julgamento da história." Pode dizer que vai "eliminar a impunidade." Ou
pode dizer que é preciso "dar exemplo.”.
Você pode ter a opinião que quiser sobre os condenados da AP 470. Pode
achar que são os maiores criminosos de todos os tempos. Pode achar que
são inocentes até que se prove o contrário -- e isso não se provou no
julgamento.
Mas precisa compreender que atos de truculência mais dura, gestos
arbitrários, medidas que nada tem a ver com a Justiça, são uma ameaça
aos direitos da sociedade inteira -- mesmo que o atingido, em
determinado momento, seja uma única pessoa.
Não se imagina que Joaquim Barbosa pretenda levar de volta para a cadeia
aqueles 100.000 prisioneiros que estão na mesma situação, no país
inteiro. Seria impraticável e desnecessário. O alvo é seletivo, bem
definido e tragicamente previsível.
Dois anos depois do julgamento, em 2012, quando se disputava a eleição
municipal, no ano de eleições presidenciais de 2014, teremos o circo
destinado a caçar – no laço da truculência -- prisioneiros ligados ao
PT.
Mais uma vez.
Joaquim Barbosa é um homem mau, como disse o professor Celso Bandeira de
Mello, mas sua maldade não é delirante, nem fora de controle. É
calculada, planejada e medida. Sabe aonde quer chegar e age com senso de
estratégia.
Esquece os réus do mensalão PSDB-MG que nem foram levados a julgamento,
embora a denúncia seja mais antiga. Esquece o DEM. Todos, no PSDB e no
DEM, tiveram direito ao desmembramento, ao segundo grau de jurisdição.
Nenhum será submetido à teoria do domínio do fato. Nenhum terá a pena
agravada artificialmente.
Esquece o ex-ministro tucano Pimenta da Veiga, que recebeu 300 000 reais
na conta, meses depois de deixar o ministério, em 2003, e sequer foi
denunciado até agora. Esquece Eduardo Azeredo, que conseguiu, pela
renúncia, ser levado para a primeira instância – José Dirceu, Delúbio
Soares, 90% dos condenados da AP 470, não tinham sequer um mandato para
renunciar. Mas foram julgados pelo STF, que não possui competência
original para tanto, e agora não têm onde cobrar o direito universal a
revisão completa do julgamento, como os demais terão caso venham a ser
considerados culpados.
E se você ainda pensa assim, “bem-feito, quem mandou ser mensaleiro?!” é
bom começar a ler um pouco sobre as tragédias políticas para entender
como elas ocorrem.
O enredo das ditaduras sempre encontra personagens obscuros, reais ou
construídos pelos meios de comunicação de cada época, que, culpados ou
não por episódios difíceis de compreender, servem como uma luva para a
consolidação de um poder acima da sociedade.
Até o incêndio do Reichstag, que ajudou a fortalecer o nazismo, foi um caso difícil de compreender, lembra?
A Revolução Francesa transformou-se numa ditadura e, mais tarde, num império, pela prisão de seus heróis mais populares.
Um dos primeiros a ir para guilhotina foi Danton, acusado de corrupção e
julgado sumariamente. Um dos últimos foi Robespierre, que era chamado o
incorruptível. No fim da linha, o morticínio pela guilhotina foi tão
grande que até o crescimento demográfico do país foi atingido.
O vitorioso foi um general, Napoleão, mais tarde coroado imperador, com
cetro, coroa e manto, titular de um regime onde os direitos democráticos
recém-criados foram esfacelados e até o direito do povo escolher seus
representantes foi dificultado.
Se você acha que a França do final século XVIII não tem nada a ver com o
Brasil de 2014, assista a entrevista a Roberto D'Ávilla onde Joaquim
Barbosa afirma sua admiração por Napoleão Bonaparte.
Está lá, em vídeo, na internet. Ninguém tem o direito de dizer que não foi avisado.
Como sempre acontece, uma ditadura -- judicial ou não -- só pode consolidar-se num ambiente de covardia institucional.
Sem o silêncio e sem gestos amigos, cúmplices, de quem deveria fazer a
democracia funcionar, uma ditadura não consegue se constituir.
Veja o que acontecia em 64, sob o regime militar.
A tortura precisava da cumplicidade de médicos que, de plantão na
caserna, examinavam prisioneiros e procuravam orientar, cientificamente,
o trabalho dos carrascos. Tentavam prever, macabramente, até onde o
sofrimento poderia avançar. Mais tarde, quando o serviço estava
terminado, apareciam legistas para assinar atestados de óbito de acordo
com a versão conveniente.
No cotidiano, a sociedade daquele tempo precisava ser alimentada por
mentiras em letras de forma. Não faltavam jornais nem jornalistas
capazes de publicar notinhas onde a morte de militantes pela tortura era
descrita como atropelamento e suicídio. Também não faltavam aqueles
repórteres que, alimentados pelos órgãos de informação, produziam textos
que contribuíam para o endurecimento político, a ampliação do
sofrimento de quem não podia defender. Nasceu, então, o repórter Amoral
Neto, lembra?
Símbolo da tortura, o delegado Sergio Fleury era glorificado.
Não faltaram, na construção do regime, políticos capazes de aprovar, em
Brasília, a vacância da presidência da República para dar posse aos
generais – embora o presidente constitucional, João Goulart, não tivesse
deixado o país. Como era preciso legalizar o golpe, o STF deu aval à
decisão do Congresso.
Atualize os personagens acima, substitua nomes, endereços. Lembre que
vivemos, obviamente, sob outro regime político, de liberdade,
democracia. Aí comprove, você mesmo, como os papéis e as situações
começam repetir-se, caso a caso.
A medicina subordinou-se a política, no caso de José Genoíno. Não vamos
julgar o valor científico de tantos laudos médicos diferentes e
contraditórios. Vamos admitir o óbvio: Genoíno jamais teria sido
examinado e reexaminado tantas vezes se não houvesse o interesse
exclusivo de justificar seu retorno à prisão de qualquer maneira.
A oposição a Jango, em 1964, chegou a acreditar que a ditadura seria de
curta duração. Só não gosta de admitir a razão de ter cultivado uma
crença tão pouco crível. Simples. Queria que o regime militar durasse o
tempo necessário para o extermínio político de adversários que não
poderiam ser vencidos nas urnas. Imaginava que depois receberia o
Planalto numa bandeja. Não foi enganada, como gosta de sugerir.
Enganou-se.
Quanto aos jornais, a dúvida é saber qual será o próximo a pedir
desculpas pelo papel que desempenhado em 64. Quando começarão a
reavaliar o que fizeram na AP 470?
A covardia institucional de hoje repete o comportamento de meio século. O fundamento é o mesmo.
Quem não pode derrotar o PT nem aquilo que ele representa – confesso que
muitas vezes é difícil saber o que realmente importa hoje – espera que
medidas de ditadura ajudem no serviço que eles próprios não conseguem
realizar nas urnas. Essa é a razão fundamental do silêncio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário