Por Venício A. de Lima Observatório da Imprensa na
edição nº 797
Credibilidade, no dicionário Aurélio, é a
“qualidade do que é crível”, isto é, “que se pode crer, acreditável”. É uma
construção, tanto para pessoas como para instituições e, claro, tem a ver com
compromisso reiterado com a verdade e coerência, no longo prazo.
A palavra escrita (não necessariamente, impressa), no correr
dos séculos, carrega com ela uma enorme credibilidade. Os judeus atribuem um
valor mágico à escrita. A Palavra (“No princípio era o Verbo”) foi ditada
diretamente de Deus a Moisés. Os muçulmanos têm a fórmula “Maktub” ou “Maktoob”
(estava escrito) para justificar o destino. Tanto uns quanto os outros usam
patuás ou amuletos (pequenas trouxas costuradas de couro ou pano) contendo
trechos da Torá ou do Alcorão para proteção divina. Para a escola do
positivismo jurídico, desde Bentham até Kelsen, vale a norma que está escrita.
Os direitos só se efetivam se estiverem codificados, se forem escritos como
leis. Ademais, o que está escrito pode ser mais facilmente confrontado com os
fatos e, supõe-se, quem escreve não quer correr o risco de ser flagrado na
mentira.
Muitas vezes se ignora que textos escritos que se tornaram
referência de credibilidade têm sua origem em tradições orais milenares,
anteriores a registros escritos. Além disso, desde que se pode “gravar” o que é
dito, a possibilidade de confronto com os fatos inclui também a palavra falada,
não só a palavra escrita.
No mundo moderno, os mediadores tecnológicos capazes de
tornar as coisas públicas, de forma centralizada, em diferentes plataformas (a
mídia oligopolizada), muitas vezes se tornam poderosos mais pelo que omitem –
isto é, “deixam” de falar, escrever e/ou mostrar – do que pelo que falam,
escrevem (publicam, de publicare, tornar público) ou mostram.
De qualquer maneira, ainda é relativamente comum, sobretudo
entre aqueles de gerações anteriores à dominância da mídia eletrônica – cinema,
rádio, televisão e, hoje, internet –, usar o argumento da verdade associado ao
fato de algo estar escrito e/ou publicado. Assim como na subcultura popular da
contravenção, “vale o que está escrito”.
A credibilidade dos jornais
Tudo isso vem a propósito de anúncio de meia página feito
publicar pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) no Dia Mundial da Liberdade
de Imprensa, instituído pelas Nações Unidas em 1993 e, este ano, celebrado no dia
3 de maio. O curto texto do anúncio introduz um neologismo:
“Credibiliberdade. Jornal. Onde credibilidade e liberdade
andam sempre juntas.”
Para além da carga de credibilidade da palavra escrita
(impressa), secularmente impregnada na nossa cultura, aproveito o anúncio da
ANJ para algumas observações.
Escola Base de São Paulo
Por uma infeliz coincidência, o anúncio sobre a
credibilidade dos jornais aparece apenas um dia após a divulgação da morte de
Icushiro Shimada (ocorrida em 16 de abril), um dos donos da Escola Base. Como
se sabe, 20 anos atrás, os donos da escola que funcionava na zona sul de São
Paulo foram transformados publicamente em pedófilos pela grande mídia, sem
oportunidade de defesa. “Kombi era motel na escolinha do sexo”, publicou em
manchete o extinto Notícias Populares e “Perua escolar
carregava crianças para a orgia”, foi manchete da também extinta Folha
da Tarde, ambos jornais do Grupo Folha [cf. Alex Ribeiro; Caso
Escola Base – Os Abusos da Imprensa; Editora Ática, 1995].
O triste caso da Escola Base certamente escapa à
“credibiliberdade” dos jornais a que se refere o anúncio.
Jornais: preferência de apenas 1,5%
Talvez os criadores da peça publicitária tivessem a intenção
de “pegar carona” na divulgação recente (março de 2014) de uma pesquisa de
hábitos de mídia da população brasileira pela Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República (Secom-PR). Um dos capítulos do relatório trata
exatamente de “confiança na mídia” [capítulo 6, ver relatório
completo aqui].
A pesquisa mereceu a devida atenção da grande mídia, em
particular dos jornais, que insistiram em dizer que eles são os veículos de
maior credibilidade. O jornal O Globo, por exemplo, em matéria
sobre a pesquisa publicada no dia 7 de março afirma:
“Entre os entrevistados, 53% dizem confiar sempre ou muitas
vezes no que leem nos jornais impressos. 50% confiam nas notícias que ouvem no
rádio; 49% confiam nas notícias televisivas; 40% nas publicadas em revistas;
28% nas que saem nos sites; 24% nas divulgadas pelas redes sociais e 22%
confiam nos blogs” [ver
aqui].
Todavia, não é exatamente isso que revelam os dados. A base
para a pergunta “Gostaria de saber quanto o (a) Sr.(a) confia nas notícias que
circulam nos diferentes meios de comunicação” foi “apenas entrevistados que
usam o meio em questão (TV, rádio, jornal, revista e internet)”. Vale dizer, os
53% que dizem confiar sempre ou muitas vezes nos jornais impressos estão entre
os 25% do total de entrevistados que declaram ler jornais pelo menos uma vez
por semana ou entre aqueles 1,5% (exatamente, 1,5%) que declaram ter no jornal
seu meio de comunicação preferido.
Mesmo levando-se em conta que a avaliação da credibilidade
de todos os meios tinha como base “apenas entrevistados que usam o meio em
questão (TV, rádio, jornal, revista e internet)”, e que a credibilidade dos
“usuários” dos jornais impressos em relação ao jornal é maior do que a dos
usuários dos outros meios em relação a eles (TV, 50%; rádio 49%; revistas 40%;
sites; 28%; redes sociais, 24% e blogs, 22%), a credibilidade real dos outros
meios – à exceção das revistas –, em números absolutos, é muito superior aquela
dos jornais porque o número de usuários é muito maior (TV, 97%; rádio, 61%;
internet 47%).
Não será por distorções como essa na divulgação dos
resultados da pesquisa da Secom-PR que a preferência pela leitura de jornais
impressos (1,5%) só não é menor do que a preferência pela leitura de revistas
(0,3%)?
Parceria com 80 bi de cigarros/ano
Chama ainda a atenção no anúncio da ANJ o registro da Souza
Cruz como “Empresa Parceira”. Será que isso significa que a empresa dogrupo
British American Tobacco pagou a veiculação do anúncio?
A Souza Cruz/British American Tobacco é “a líder do mercado
nacional, que possui seis das dez marcas mais vendidas no Brasil e produz cerca
de 80 bilhões de cigarros por ano e controla (2º semestre de 2012) 60,1% do
mercado total brasileiro”[ver
aqui]. Ela tem sido a principal parceira da ANJ nas ações de defesa da
chamada “liberdade de expressão comercial” [ver “Sobre
a ‘liberdade de expressão comercial’“].
Esse curioso conceito que transforma em equivalentes dois
tipos totalmente distintos de informação – a jornalística e a publicitária – se
ampara na falácia liberal conservadora de que o Estado autoritário pretende
“tutelar os consumidores, como se eles não tivessem capacidade de decidir o que
querem consumir”, para combater a norma constitucional e a Lei nº 10.167, de 27
de dezembro de 2000, que “dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de
produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos
agrícolas”.
Está no capítulo V (Da Comunicação Social) do Título VIII
(Da Ordem Social) da Constituição de 1988:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a
expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º – Compete à lei federal:
(...)
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à
família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio
e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente.
§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos
termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário,
advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
Nunca é demais lembrar a dimensão social do problema
contido no tabagismo. Estudo recente realizado pela Aliança de Controle do
Tabagismo (ACT) revela que “o Brasil gasta
em torno de R$ 21 bilhões no tratamento de pacientes com doenças relacionadas
ao cigarro. O tabagismo é responsável por 13% das mortes no País. São 130 mil
óbitos anuais, sendo (350 por dia). Dados do Ministério da Saúde indicam que a
fumaça do cigarro reúne cerce de 4.700 substâncias tóxicas diferentes, muitas
delas cancerígenas” [ver
aqui].
Será que a “credibiliberdade” dos jornais se constrói
combatendo normas legais expressas em decisões da Agência de
Vigilância Sanitária (Anvisa), em restrições a anúncios de cigarros e à
propaganda de alimentos e produtos dirigidos a crianças?
“Credibiliberdade”
Por fim resta um breve comentário sobre a afirmação de que
nos jornais “credibilidade e liberdade andam sempre juntas”.
Se o conceito de liberdade se refere à liberdade que os dos
donos de jornal têm de imprimir o que querem de acordo com seus interesses
privados – notícias, entretenimento e anúncios – não poderia haver equívoco
maior.
As bases sobre as quais se funda a credibilidade do
leitor(a) têm a ver com uma “outra” liberdade. Uma liberdade que é também um
direito e atende ao interesse público: ser informado corretamente, sem
inverdades, sem omissões e sem distorções.
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