Depois de romper com Lula, com o PT,
com o PV, e isolar-se no PSB, Marina Silva é uma salvadora da pátria
que quer juntar Neca (Setúbal) e Chico (Mendes). Pode?
Foi possível comprovar no debate da Bandeirantes que Marina Silva
escolheu o caminho mais confortável para fazer campanha eleitoral.
Se você passar as ideias de Marina numa máquina de fazer suco, irá
sobrar um ponto: a pregação da unidade. Marina diz que o Brasil está
cansado da polarização. Diz que o tempo de conflito entre PT e PSDB
acabou. Afirma que é preciso unir os bons, os capazes, os honestos, que
estão em toda parte, em todos os partidos. Diz que o país está cansado
de criticar uma “elite” onde se encontram Neca Setúbal e Chico Mendes, e
também lideranças indígenas e grandes empresários. Olha que bonito. Não
há poder econômico, nem desigualdade, nem classe dominante. Não há, é
claro, um sistema financeiro de um país que, tendo a sétima economia do
mundo, possui bancos cujo rendimento encontra-se entre os primeiros do
planeta.
É bom imaginar que o mundo é assim. Relaxa, conforta. Permite
interromper o debate e tirar férias. Pena que seja uma utopia de
conveniência.
Mais. É uma fantasia que não cabe na biografia de Marina Silva. Pelo contrário.
Poucas vezes se viu uma história de divisão e desagregação como método de ação política.
Veja só. Ela rompeu com o governo Lula, onde fora instalada no
Ministério depois da campanha — de oposição — contra o governo Fernando
Henrique Cardoso. Saiu do PT e foi para o PV. Saiu do PV e foi para a
Rede. Incapaz de unificar os militantes e ativistas que queriam
transformar a Rede num partido, bateu às portas do PSB depois de
denunciar a decisão do TSE. Criou casos, brigas e divergências desde o
primeiro dia. Brigada à esquerda e à direita do partido, era protegida
por Eduardo Campos, a quem interessava contar com seu Ibope para evitar
um desempenho pequeno demais no primeiro turno. Marina estava isolada
dentro do PSB, afastada dos principais dirigentes, quando, por “força
divina”, como ela diz, ocorreu a tragédia que permitiu que se tornasse
candidata a presidente. Seguiu brigando: logo de cara o
secretário-geral, homem de confiança de Miguel Arraes, patrono histórico
do PSB, foi embora da campanha, dizendo que não iria submeter-se
“àquela senhora.” Outras brigas ocorreram. Outras foram suspensas
porque, pela legislação eleitoral, já venceu o prazo para candidatos a
deputado, senador e governador trocarem de partido.
O discurso da unidade pode ser real. Depois da posse de Lula, o país
buscou e construiu uma unidade política real, que nunca esteve isenta de
conflitos, mas se destinava a atender a uma necessidade histórica
reconhecida: ampliar os direitos da maioria, diminuir a desigualdade,
desenvolver o mercado interno e definir um papel altivo do país no
mundo. Melhorias que estão aí, à vista de todos.
Mas a “unidade” pode ser um recurso retórico para apagar as diferenças —
reais e importantes — entre os candidatos a presidente. Permite fugir
do debate real, desfavorável quando travado com lucidez e racionalidade.
Ajuda a fingir que todos são equivalentes em virtudes e defeitos, e
podem ser colocados no mesmo nível. Elimina-se a história, num esforço
para apagar a memória.
Marina precisa minimizar os bons dados do emprego, do consumo, do
salário mínimo, preparando o terreno para revogar essas mudanças.
Este comportamento ajuda a criar a ilusão de que todos — banqueiros e
seringueiros para começar — têm as mesmas ambições e mesmos projetos. A
mágica fica aqui: basta que surja uma liderança providencial — olha a
força divina, de novo — para convencer todos a dar-se as mãos em nome do
bem, sob liderança de Marina Silva. Não há projeto, não há o que fazer.
Tudo pode ser o seu avesso, ao sabor das conveniências.
A sugestão é que só faltava aparecer alguém com tanta capacidade
permitir que isso ocorra em 2014. Felizmente, essa personagem apareceu.
Sou totalmente favorável a liberdade de religião mas temo que, em breve,
alguém possa sugerir que oremos olhando para agradecer.
Essa linha de argumentos é uma tentativa de eliminar as conquistas e
vitórias importantes dos últimos anos, passar uma borracha nos avanços
obtidos e preparar a revanche dos derrotados de 2002.
Por isso Marina fala de uma unidade que esconde dados reais. Os
economistas de seu círculo são tão conservadores que já reclamaram dessa
“extravagância” brasileira que é comer um bife por dia, como já fez
Eduardo Gianetti da Fonseca. Dizem que a humanidade andou consumindo
demais e que o regime de contemplação típico da religião budista pode
ser uma condição para o progresso, como já disse André Lara Rezende,
que, coerentemente, já escreveu que a posição do país na divisão de
riqueza mundial não lhe permite ambicionar um crescimento econômico em
taxas mais do que medíocres. Todos celebram o governo de FHC como
patrono da moeda sem lembrar que em seus dois mandatos a inflação subiu
mais do que nos anos Lula e também nos anos Dilma. Todos lamentam o
Brasil de 2009 — justamente o momento em que Lula reagiu a crise mundial
e impediu que o país afundasse como a Grécia, a Espanha, a Irlanda,
quem sabe a França. Balanço para 2014: defender a independência do Banco
Central em cima desses selvagens, entendeu?
O esclarecimento das opiniões e o conflito de ideias são elementos
indispensáveis da democracia, como ensinou Hanna Arendt, autora
essencial para se entender que as ditaduras e governos autoritários
nascem pela negação da existência de classes sociais e interesses
divergentes.
Foi este o aprendizado que, numa longa caminhada iniciada no ABC de Luiz
Inácio Lula da Silva, nos estudantes que enfrentaram a ditadura, nos
trabalhadores rurais do Acre de Wilson Pinheiro e Chico Mendes, foi
possível construir uma aliança política nacional capaz de abrir brechas
num sistema de poder eternizado pela força bruta dos cassetetes e por
vários salvadores da pátria.
Este é o debate.
Paulo Moreira Leite
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