Era
uma época cheia de perigos. Sarampo, caxumba, catapora, bicho do pé.
Engolir chiclé era perigoso porque colava nas tripas. Fazer careta era
perigoso porque se batesse um vento você ficaria com o rosto deformado
pelo resto da vida. Pé descalço em ladrilho: pneumonia. Melancia com
leite: morte certa. Banho depois de comer: congestão.
Um dia fizeram uma cabana num terreno baldio. Ainda havia terrenos
baldios. A cabana era o mundo secreto deles, da turma. Ganhou um nome:
Clube da Sacanagem. Ninguém precisava saber o que acontecia lá dentro.
Os cigarros roubados de casa. As revistinhas. Mas a primeira coisa que o
menino fez dentro da cabana foi comer melancia com leite e não morrer.
Com o tempo, os perigos mudavam. Desatenção na escola, falta de estudo,
notas baixas: fracasso, nenhum futuro, ruína. Sexo sem camisinha:
doença, gravidez indesejada, ruína. Amizades perigosas: drogas,
dependência, nenhum futuro, ruína, morte.
— E banho depois da comida?
A ironia não era entendida.
— Pode.
O grande amor deixava olhar, mas estabelecera um ponto nas suas coxas
do qual era proibido passar. Como o Paralelo 38, que dividia as duas
Coreias. E ela era rigorosa. No caso de transgressão, soavam os alarmes e
havia o perigo até de intervenção americana.
Mas bom, bom mesmo, era o orgulho de um pião bem lançado, o prazer de
abrir um envelope e dar com a figurinha rara que faltava no álbum, o
volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entre os dedos, o
cheiro de terra úmida, o cheiro de caderno novo, o cheiro inesquecível
de Vick-Vaporub. Mas, melhor do que tudo, melhor do que acordar com
febre e não precisar ir à aula, melhor até do que fazer xixi em piscina,
era passe de calcanhar que dava certo.
É ou não é?
Luis Fernando Veríssimo
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