Sociólogo português Boaventura de
Sousa Santos veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus
fosse um ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos, democracia e
desenvolvimento", o segundo em coautoria com a filósofa Marilena Chaui.
Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em entrevista à Folha Fábio Braga/Folhapress |
Folha - "Se Deus fosse um ativista
dos Direitos Humanos" é um título provocador. Sugere que o senhor
acredita em Deus. E sugere que Deus poderia dar mais importância para os
direitos humanos. É isso?
Boaventura de Sousa Santos - De fato, não. O título é provocador.
Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal
[filósofo francês, 1623-1662]: diria que não temos meios racionais para
poder afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que podemos é fazer
uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como sociólogo, o que
penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e que
organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de fortes movimentos sociais em todo o mundo, com
protestos, muita indignação, muita revolta. Alguns desses movimentos
trazem no seu interior pessoas e grupos que seguem diferentes religiões.
Ou que transformam a religião e a existência de Deus no motivo da ação
ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de analisar.
Esse fenômeno é extremamente ambíguo.
Quando surgiu a curiosidade?
Eu já tinha notado desde o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que
havia movimentos sociais e organizações de diferentes partes do mundo
com vivências religiosas, como a Teologia da Libertação e outros. Tinham
uma dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era forte.
Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da religiosidade é
sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me fascinou, pois eu
venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo tenho criticado,
mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura tinha resolvido o
problema através do que chamamos de secularismo, que é expulsar a
religião do espaço público.
A presença da religião na política está crescendo?
A religião nunca saiu verdadeiramente da política. Temos sociedades que
são laicas, mas cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por
exemplo. E temos sociedades onde a convivência é mais laica do que
outras. Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo e
a secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que a
religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na vida.
Secularidade é aquela que permite que haja expressões [religiosas] no
espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os cidadãos.
Mas é evidente, a gente sabe, a maneira com que a Europa resolveu a
questão da separação da igreja e do Estado no século 17, depois de uma
guerra enorme, nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter
uma grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou
com grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco disse
recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos), acerca
das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são questões de
interesse público.
O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior presença
da religião no espaço público. No mundo árabe, no mundo indiano e também
no mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões religiosas, cada
vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. É uma
presença pública muito mais forte, mas também um interesse em
influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos parlamentos. É o
que acontece hoje no Brasil.
No Brasil isso parece mais evidente a
partir da eleição de 2010, quando o assunto chegou a dominar o debate
eleitoral. Como tem sido no resto do mundo?
Na Europa não é tão forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas
encontramos no próprio mundo islâmico, por outro lado, diferentes formas
de afirmação religiosa que não são todas fundamentalistas. Algumas são
bastante moderadas. Mas que também se recusam a pensar que sua dimensão
espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.
Então o mundo hoje é mais diverso, e dessa diversidade, no meu entender,
faz parte uma maneira muito diversa de ver a religião na vida pública.
Isso está surgindo por todo lado, com formações bem distintas.
Algumas continuam na base da sociedade, como acontecia com a Teologia da
Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos nos últimos
anos, no Brasil muito claramente, a influência [religiosa] na própria
cúpula do Estado, na estrutura política do Estado. Isso é novo.
Era uma corrente que já vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma
corrente muito conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos
Estados Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele disse
assim: "quando um dia não houver uma grande diferença entre democratas e
republicanos, e se forem todos mais ou menos conservadores, podemos
começar a jogar golfe tranquilamente, pois significa que cumprimos a
nossa missão".
E a esquerda com isso? Seu livro é uma espécie de ajuste?
O pensamento crítico da esquerda, de uma sociologia crítica, sempre foi
muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer análise
que não seja simplesmente dizer que religião é o ópio do povo fica como
suspeita.
Minha experiência no Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu
mantivesse essa atitude pouco complexa, eu deixaria fora da minha
análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a
injustiça, a discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente
que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma
referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é alienante.
Então escrevi esse livro também para fazer as contas comigo mesmo.
Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o
Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta
desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos
não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.
O outro livro é sobre direitos humanos, que parece refluir na medida em
que aumenta a influência religiosa. Alguns políticos têm como principal
plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as relações entre as
duas coisas?
É obviamente uma estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as
correntes conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo.
Houve, de fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua
missão era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os
pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas
favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda uma outra
corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do governo. Alguns
deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o direito para os
Estados e que, portanto, os direitos humanos não pertencem a esse
direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde há conceitos muito
hostis aos direitos humanos.
Então, de vários lados, estamos a assistir a um ataque aos direitos
humanos. Esse é o tema do meu outro livro, escrito por um sociólogo que
se considera um cidadão ativista dos direitos humanos.
Eu também faço uma crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica
progressista: os direitos humanos são pouco. Então eles são criticados
por mim por serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo
pouco porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são
sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos
humanos. São violados constantemente.
Agora, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, em que as narrativas
socialistas caíram em desuso, pelo menos até agora, o que ficou de luta
por uma sociedade melhor foram os direitos humanos. Se o socialismo
estivesse na agenda política, eu tenho certeza que essa direita
religiosa incidiria completamente contra o socialismo.
Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos
em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu
considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do
reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é
preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter
acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com
Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar
um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais
consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi
um grande avanço.
Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que
trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista,
pode ser considerado um obstáculo.
Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos
coletivos. E os direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos,
internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou,
sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho], que
obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. E de boa fé! E
que, hoje em dia, depois da declaração das Nações Unidas de 2007 sobre
os direitos dos povos indígenas, firma-se na jurisprudência da Corte
Internacional de Direitos Humanos que sempre que estejam em causa a
própria sobrevivência de um povo, seja uma barragem, seja um projeto de
mineração, a consulta deve ser vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho que
dizer que tem havido retrocesso.
Não é só na demarcação de terras. Tem ainda a questão de saber se a
concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do
Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá
qualquer concessão.
Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha, está
realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena camponês,
que foi uma grande forma de transformação em toda América Latina.
O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da
região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do
México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena
que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente
parar essa barragem.
Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente
da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São governos que eu
considero progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma
maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de
acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo,
aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da
economia.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América
Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem
muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é
suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente
precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um
momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.
Qual o senhor citaria?
É certo que o Congresso é outra coisa. Mas eu fico espantado como é que é
possível, estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff, como é
possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no Congresso. É a
semente que fica estéril, a suicida. Isso está suspenso. É ilegal para o
mundo inteiro. É um escândalo, se aprovar. Ela foi suspensa no âmbito
da convenção de biodiversidade exatamente porque coloca os camponeses
nas mãos da Monsanto e das outras três ou quatro empresas que têm a
patente. Isso é o fim da agricultura camponesa.
Em muitos países é a agricultura camponesa que alimenta as populações,
pois a grande indústria produz soja e outros produtos de exportação. A
diversidade da produção agrícola é feita por pequenas propriedades, a
agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso significa arrogância
dessas empresas transnacionais que têm acesso ao parlamento para ditar
sua lei. E se você olhar bem, há uma aliança entre os religiosos
evangélicos e os ruralistas. Então aqui há uma convergência de forças,
uns que vêm da tradição ruralista, outros que vêm de uma tradição
religiosa de direita, que se armou contra o comunismo e contra a
revolução na América Latina.
Então não considero a presidente Dilma um governo de direita por sua
capacidade de distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que não
vem de agora.
Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades antes
desses protestos: zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem
uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por
conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais
aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu considero uma
perda muito grave.
A ex-ministra Marina Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos
que o senhor mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve para a
esquerda?
Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva, estive em vários painéis
com ela e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não
porque a influência religiosa no país iria nitidamente continuar a
desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma
dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do que
um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um potencializador de
uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.
Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e
pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara
nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Seria desacelerar
ainda mais as políticas de redistribuição social que foram aquelas que,
no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.
Não penso que a Marina Silva esteja muito sensível a isso tudo. Então eu
penso que ela é uma cara nova para a direita. Não é uma cara para a
esquerda, no meu entender.
Milhares de pessoas foram às ruas no
Brasil para protestar por diversas causas. Tudo muito rápido e inédito.
O senhor tem alguma reflexão sobre o que ocorreu no país?
Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a
primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no
sul da Europa e na Grécia, o movimento "Yo soy 132", que é contra a
fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e
também os protestos no Brasil.
Considero que 2011-2013 é um daqueles momentos no mundo como nós tivemos
em 1968, 1917, 1848. São momentos de movimentos revolucionários.
O que os caracterizam fundamentalmente hoje? São sinais de que, em
muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa
intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não
funcionam propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que
não está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há
uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi
derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e
as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se
manifestar.
Quem é esse cidadão?
É um cidadão diferente dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um erro
do pensamento político foi pensar em cidadãos organizados que fazem
essas revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas,
normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, de
partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de
repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na Europa, nos
EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as
instituições parecem não dar respostas às aspirações populares.
Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do
Brasil ou do occupy. São coisas distintas.
O movimento do Brasil tem uma genealogia, uma história, semelhante ao
movimento dos indignados de Portugal, da Espanha e da Grécia. São jovens
democracias onde houve uma expectativa de uma social-democracia, uma
democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte.
Havia uma expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa era a
promessa. A democracia não é simplesmente mero voto e a representação
política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos. Portanto
nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína dessas
aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda acreditar que
eles têm esses direitos.
Os occupy já nem têm sequer essa ilusão, pois a democracia americana é
cada vez mais restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a
sério nos EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o
país.
Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que ela
acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países
dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos
transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito
claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de
classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá amanhã sobre a
taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos
portugueses, as reivindicações. E quanto mais as pessoas vão para as
ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a democracia
está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida hoje
contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhávamos para um estado de
bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O
que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa frustração.
Compartilha com os outros movimentos essa espontaneidade. E o fato de
não ser ideologicamente unitária, é o mais diverso possível. E com
demandas contraditórias. E com uma característica também comum em todos
eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem
chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o que
não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma demanda, como
foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma demanda que
rapidamente pode ser superada por grandes demandas de superação do
Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se imolou na Tunísia
queria apenas que legalizassem o seu comércio de rua, e de repente
aquilo era uma luta contra a ditadura.
O que todos estão a dizer? Estão a dizer que o mundo está
escandalosamente desigual. Essa não é uma questão da pobreza. É que nos
países, internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão
grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com
cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos
aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais
ricos.
Essa descrição não coincide
exatamente com o que ocorreu no Brasil. A distribuição de renda
brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma das piores do mundo, mas
melhorou.
Sim, está reduzindo [a desigualdade de renda], nunca tinha acontecido
antes, isso é preciso reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha
leitura, é que as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer -
e por isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita - são as
que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração é que
essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer evoluir,
quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos serviços públicos.
E aí estancou.
O senhor disse que esses grupos
sabem dizer o que não querem, mas não sabem dizer bem o que querem. No
Brasil, entre as coisas que eles diziam não querer estavam os partidos
políticos. Teve até hostilidade, violência. O senhor vê isso com
preocupação?
Sim, evidentemente. Mas ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo. É
aquilo que eu disse, que a democracia representativa liberal foi
dominada e vencida pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do
dinheiro nas eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os
representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É
aquilo que a gente chama de patologia da representação: os representados
não se sentem representados por seus representantes.
É um processo conhecido, pois há anos discute-se no Brasil a necessidade
de se fazer uma reforma política, uma reforma do sistema eleitoral, do
financiamento dos partidos. E todas essas reformas têm sido bloqueadas.
Então essa negação não é propriamente a negação da democracia
representativa. São duas ligações importantes: esta democracia
participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que tem hoje
nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades complexas não
chega, ela precisa ser complementada pela democracia participativa.
Eu acho extraordinário que, no caso da primavera árabe - jovens de
vários países que não tiveram democracia propriamente - a grande
bandeira é a democracia real. Portanto quando dizem que há luta contra
os partidos, não é que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não
têm nenhuma validade. É esta forma de democracia, a do poder do
dinheiro, que está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos
riscos para a sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos
sobre isso, que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma
reforma política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder,
não podemos esquecer.
Mas nos protestos ninguém levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.
(risos) É por isso que eu digo: as pessoas não sabem o que querem, sabem
o que não querem. Como é que se faz formulação política? Para sair
daquilo que elas não querem, é preciso uma reforma política. Obviamente.
E é por isso que temos partidos.
Eu acho que cabe à classe política encontrar as soluções. Os jovens não
têm que saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam. Como é
que vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente robusto? Não
têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer isso. A reforma
política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu uma certa esperança
quando falou nas cinco medidas que seriam tomadas e incluiu a reforma
política, mas, infelizmente, os poderes conservadores do Congresso...
Foi nesse contexto que surgiram os
grupos "black blocs", com a tática de causar danos materiais para fazer
suas denúncias. Eles aparecem em tudo, da greve de professores à ação
para libertar cachorros de um laboratório de pesquisa médica. Qual é a
opinião do senhor sobre esses grupos?
Esses grupos nasceram nos anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia
nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia
de que "temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não
dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de
viver". Tiveram muita repercussão.
No momento em que começam os protestos contra a globalização, Seatle
(EUA) é o marco, eles começaram a assumir duas características de sua
tática: de um lado a ideia de violência contra propriedades símbolos do
capitalismo, que pode ser um McDonald's, um banco; de outro lado, a
defesa dos manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações,
foram eles que, diante da violência policial, defenderam mais
eficazmente os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no
meu entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo "black
bloc". Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser o
enfrentamento entre os "black blocs" e da polícia.
Um terceiro fator que complica, principalmente a partir do ano 2000,
isso está documentado, é que a polícia infiltra o "black bloc" para
depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários países.
E este é o contexto em que nós estamos.
Mas como entender o "black bloc"?
Não são grupos de extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo, temos
que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do
diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu
entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo que
chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim, queremos
que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender, para fazer
pressão pacífica sobre os Estados.
Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as
Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os
evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a
agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de
esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa
pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser
inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a
rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.
Ora bem, se é esse o objetivo, o "black bloc" é uma força
contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo
que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem
ao final "não vamos". Penso, portanto, que o "black bloc" deve analisar
em que contexto nós estamos.
O ex-presidente Lula fez uma crítica
direta ao uso das máscaras. Disse que participou de muita manifestação
de rua, mas que nunca usou máscara porque não tinha vergonha do que
fazia.
Eu acho que é uma posição legítima, mas não sei se é a única resposta
que se pode dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo
disso é o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu
considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de
professores no México, teve a presença dos "black blocs" com as máscaras
negras. E chegou ao ponto também em que o governo está para promulgar
uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi a reação? Os homossexuais
começaram a usar máscaras pink. Foram para os protestos com máscaras
cor-de-rosa, máscara homossexual. Então a polícia vai prender? Eles não
praticam nenhuma violência, usam máscara agora para afirmar a
diversidade sexual.
Isso é para ver como a coisa é complicada. Criou-se uma solidariedade
entre os homossexuais e o "black bloc". Então, por vezes, as autoridades
se excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma. Penso que a forma
é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa. Obviamente é uma
discussão muito difícil, mas é uma discussão que é preciso ter.
Boaventura de Souza Santos,
sociólogo português, doutor pela Universidade de Yale (EUA), professor
da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin
(EUA). Livro recente "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos"
(Cortez Editora)
Ricardo MendonçaNo fAlha
Um comentário:
Entrevista excelente! Parabéns pelo blogue.
Postar um comentário