Com esta matéria, inauguramos a série sobre o processo de sonegação de impostos da Globo envolvendo os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. É o terceiro projeto financiado pelos nossos leitores através de
Em um dos momentos curiosos da eleição deste ano no Rio de Janeiro, a
apresentadora da TV Globo Mariana Gross, após entrevistar ao vivo o
candidato a governador Antony Garotinho, olha para a câmera, o que
significa se dirigir aos telespectadores, e diz:
— A Globo não sonega. A Globo paga seus impostos.
Era a resposta a um comentário do candidato:
— A Globo, por exemplo, é acusada de sonegar milhões em um esquema
envolvendo laranjas. É uma acusação. Pode não ser verdade, eu até
acredito que seja, mas é a minha opinião.
O caso levantado na entrevista remete à assinatura do contrato de
concessão de licença para a transmissão da Copa do Mundo de 2002,
assinado no dia 29 de junho de 1998. De um lado, a ISMM Investments
AG, da Suíça, representante da Fifa. De outro, a TV Globo e Globo
Overseas, uma empresa holandesa controlada pela família Marinho. O
valor do contrato era de 220,5 milhões de dólares, o equivalente hoje a
600 milhões de reais e dava direito à transmissão de 64 jogos da Copa e
de todos os eventos relacionados.
Oito anos e duas Copas depois, o auditor fiscal Alberto Sodré Zile, da
Delegacia da Receita Federal do Rio de Janeiro, encerrou uma
investigação sobre a aquisição dos direitos de transmissão pela Globo e
concluiu:
“A Globo sonegou impostos, mediante fraude, no montante de 183 milhões
de reais, em valores atualizados em 2006. Por considerar a fraude uma
agravante da sonegação, aplicou multa em percentual dobrado, no valor
de 274 milhões de reais. Com os juros de mora, calculados até 29 de
setembro de 2006, Zile entregou à Globo uma conta de 615 milhões de
reais.”
O auditor fiscal fez ainda uma representação para fins penais, que
deveria ser encaminhada ao Ministério Público. Nela, como um anatomista
diante de um cadáver, descreve cada pedaço de um quebra cabeças que
revela uma intrincada engenharia financeira.
“Em um ano e meio, diversas operações societárias foram engendradas
para que, ao fim, a TV Globo e a Globosat pudessem transmitir a Copa em
que o Brasil se sagrou pentacampeão. Foram seis alterações sociais e
duas empresas constituídas e destituídas neste curto espaço de tempo”,
escreve.
Segundo ele, as operações tinha “um único objetivo”: esconder das
autoridades brasileiras a aquisição dos direitos de transmissão da Copa
do Mundo pela TV Globo e, com isso, “fugir da tributação mais
desfavorecida”.
Alberto Zile reconhece o direito das empresas de buscar reduzir o
pagamento de impostos. Mas diz que o chamado “planejamento fiscal” tem
um limite: a fraude. E ele cita o caso da empresa Empire, constituída
nas Ilhas Virgens Britânicas.
A Empire não tinha uma câmera sequer, muito menos microfone ou antena
de transmissão, mas até alguns meses antes do início da Copa de 2002
eram dela os direitos de transmissão de um dos maiores eventos
esportivos do planeta.
A TV Globo pagou pela Empire cerca de 221 milhões de dólares, mesmo
sabendo que a Empire, além de não contar com equipamentos, não tinha
sequer um escritório. Sua sede era uma caixa postal nas Ilhas Virgens
Britânicas, a PO Box 3340, compartilhada com a Ernst & Young Trust
Corporation (BVI) Ltd.
Na investigação, o auditor descobriu que, por trás da Empire, estava a
própria TV Globo. Em sua defesa, o grupo sustentava que a compra da
Empire fazia parte de uma estratégia de ampliação dos negócios da Globo
no Exterior. Mas a farsa caiu por terra quando a Receita Federal fez um
questionamento por escrito sobre a propriedade da Empire.
O advogado José Américo Buentes admitiu: “Existe vínculo
indiretamente”, porque os controladores da Globo e da Empire sempre
foram as mesmas pessoas. Para o auditor fiscal, tudo não passou de
“simulação”.
O teatro que o auditor fiscal Zile descreve tem mais três capítulos: um
no Brasil, outro no Uruguai e mais um na Ilha da Madeira. Depois de
comprar a Empire, a Globo repassou as cotas da empresa a outra
companhia, criada por ela no Rio de Janeiro, a GEE Eventos Esportivos
Ltda, que, a exemplo da empresa das Ilhas Virgens, não tem estrutura
para gravar em vídeo uma só entrevista, muito menos transmitir a Copa do
Mundo. É empresa de fachada.
Nas vésperas da abertura da Copa de 2002, a Globo fechou a GEE e
dividiu com a Globosat (canal fechado) os direitos de transmissão. O
dinheiro usado para pagar o ISMM, representante da Fifa, saiu da própria
Globo, via uma simulação de empréstimo a uma empresa do Uruguai, a
Power, e outra simulação de empréstimo com uma empresa chamada Porto
Esperança, na Ilha da Madeira.
Nos dois casos, empresas credoras e devedoras são controladas pelas
mesmas pessoas: os irmãos Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e
José Roberto Marinho.
Um trecho da representação contra os filhos de Roberto Marinho diz:
“De fato, as operações arroladas, de forma sintética, no item 1.3, dão a
clara ideia de que vários dos atos praticados pela fiscalizada estavam
completamente dissociados de uma racional organização empresarial e,
consequentemente, de que a aquisição dos direitos de transmissão, por
meio de televisão, da competição desportiva de futebol internacional,
com intuito de fugir da tributação mais desfavorecida.”
Com a engenharia financeira, a Globo deixou de pagar à época o tributo
pela aquisição dos direitos de transmissão: 15% sobre valor total, caso
o negócio fosse feito diretamente com a Suíça, ou 25% caso se
concretizasse nas Ilhas Virgens Britânicas, como a rigor se
concretizou. As alíquotas são diferentes para locais considerados
paraísos fiscais, como é o caso das Ilhas Virgens.
A Globo recorreu da autuação junto ao Conselho do Contribuinte que, por unanimidade, deu razão ao auditor fiscal.
Algumas semanas depois, quando o processo estava pronto para ser
remetido ao Ministério Público Federal, que teria a prerrogativa para
denunciar criminalmente os irmãos Marinho, uma funcionária da Receita
Federal interrompeu seu período de férias para entrar na Delegacia e
levar embora toda a documentação.
Essa funcionária foi presa, mas com a ajuda de uma banca de cinco
advogados, conseguiu habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, numa
decisão que tem, entre outras, a assinatura do ministro Gilmar Mendes.
Dois especialistas tributários que entrevistei nesta semana falaram
sobre o caso da sonegação, sem que soubessem os nomes dos envolvidos.
Ambos consideraram os fatos graves, mas disseram que o risco dos
culpados serem punidos é zero.
Na Itália, até Sophia Loren passou uma temporada na cadeia pelo crime
de sonegação fiscal. Nos Estados Unidos, a proprietária do Empire State
passou uma temporada presa por deixar de pagar impostos. Recentemente,
na Alemanha, o presidente do Bayern foi condenado pelo mesmo crime.
No Brasil, o Código Tributário Nacional, de 1969, dá ao sonegador a
chance de se acertar com o Fisco até a abertura do processo na Receita
Federal. O Código está em vigor, mas, nesse ponto, virou letra morta, em
razão de sucessivas decisões judiciais que estenderam a extinção da
punibilidade até a aceitação da denúncia pela Justiça.
Agora, uma corrente que já coleciona algumas vitórias nas cortes
superiores, advoga que a punibilidade se extingue a qualquer tempo,
desde que o sonegador pague seus débitos, mesmo com o processo judicial
em andamento ou até concluído.
De alguns anos para cá, o Congresso Nacional aprovou algumas vezes o
chamado Refis, uma colher de chá para o devedor. A justificativa é
ajudar o contribuinte em dificuldade e elevar a arrecadação do Fisco.
Com isso, multas e juros de mora caem quase a zero.
Em 2009, o Legislativo concedeu o Refis, e a Globo fez circular a
versão de que quitou seu débito nessa leva de inadimplentes. A empresa
nunca mostrou o DARF, e no processo da Receita Federal que vazou na
internet consta apenas um DARF em nome da Globo. É no valor de R$ 174,50
e diz respeito a uma taxa de recurso.
O ex-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP, Raul
Haidar, é um firme defensor da extinção da punibilidade a qualquer
tempo. Perguntei a ele se esse entendimento não acaba por tornar a
sonegação um crime que compensa. O contribuinte deixa de pagar e,
apanhado no crime, adere a um Refis e segue a vida, sem pena, juros ou
multa. Para quem paga impostos, é uma injustiça.
“Injusto é pagar impostos neste país”, disse ele, encerrando a entrevista.
Para o atual presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP,
Jarbas Machioni, a extinção da punibilidade depois de iniciado o
processo na Receita, é uma norma, de fato, injusta.
No caso da sonegação de impostos sobre o direito de transmissão da Copa
de 2002, não são apenas os ventos do Judiciário que sopram a favor da
Globo. O caso era desconhecido até que uma mão invisível vazou os
primeiros papéis do processo na Justiça, sete anos depois.
Pressionado por entidades civis do Rio de Janeiro, o Ministério Público
determinou a abertura de inquérito na Polícia Federal, que recebeu o
número 926/2013, e para tocá-lo foi designado o delegado Rubens de Lyra
Pereira. Seu currículo despertava algum otimismo sobre o desfecho da
investigação. Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, faz mestrado e tem outras duas graduações em universidades
públicas, Filosofia e Direito.
Na semana passada, fui procurá-lo para falar da investigação. Rubens
foi transferido. Ele deixou a Delegacia Fazendária e foi trabalhar no
plantão da Polícia Federal, num movimento que revela desprestígio. Seu
sucessor no inquérito é Luiz Menezes, que estava viajando.
O chefe interino da Delegacia Fazendária, Rafael Potsch Andreata, não
quis falar sobre o caso. “É sigiloso”, disse ele. O inquérito 926/2013
vai completar um ano, os fatos que deram origem à sonegação, dezesseis. A
investigação realizada pelo auditor fiscal Alberto Sodré Zile terminou
há oito anos e sua conclusão foi endossada pelo conselho que julgou o
recurso da Globo:
— A fiscalização, em face dos fatos descritos, constatou a simulação e,
então, afastou o ato aparente para viesse à tona o negócio real: não
recolher o imposto de renda na fonte devido pelo pagamento, ao exterior,
em razão da aquisição do direito de transmissão, por meio de
televisão, de competições desportivas.
Com esta reportagem, começamos uma série sobre o caso da sonegação da
Globo. Como mostra o relatório da Receita Federal, nosso ponto de
partida, é um caso que se reveste de alto interesse público. Vamos
procurar suspeitos e testemunhas, apurar o que houve nos paraísos
fiscais e nos escaninhos do poder. Vamos dar nomes e mostrar o rosto que
estão por trás de assinaturas de contratos, distratos, remessas de
divisas, constituição de empresas.
Há quase 50 anos, em plena ditadura militar, a Globo foi acusada de
buscar um sócio estrangeiro para montar a sua rede de televisão, o que
era proibido na época. A prova de que havia essa sociedade oculta era
uma escritura pela qual a Globo vendeu ao grupo Time-Life o prédio onde
hoje funciona o seu departamento de jornalismo, na rua Von Martius, no
Rio de Janeiro.
A escritura foi arrancada do livro de registro do 11º Ofício de Notas.
Na época, o jornal O Estado de S. Paulo chegou a dar a notícia, e
depois o assunto desapareceu da imprensa. De lá para cá, o número de
publicações foi reduzido, e a Globo se consolidou como uma das maiores
empresas de comunicação do mundo.
Com esse projeto, financiado pelos leitores do Diário do Centro do
Mundo, trabalhamos com a firme convicção de que um expressivo segmento
da sociedade decidiu escrever uma nova página na história da mídia.
Roberto Marinho e os filhos |
Joaquim de Carvalho
No DCM
Do Blog CONTEXTO LIVRE.
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