Marzeni Pereira da Silva: “A mídia ajudou o governador a acobertar as reais razões da crise hídrica” |
Durante o primeiro semestre de 2014, a mídia corporativa praticamente
ignorou a crise de abastecimento de água na Região Metropolitana de São Paulo.
E não foi por falta de alerta de especialistas.
Em 24 março, em entrevista ao Viomundo,
o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto, professor aposentado de
Hidráulica e Saneamento da Escola Politécnica da USP, denunciou:
“Apesar de o nível do sistema Cantareira diminuir dia após dia, o
governador Geraldo Alckmin (PSDB) insiste: o racionamento de água está
descartado em São Paulo”.
“Só que o governador e a Sabesp já estão fazendo racionamento e dizem
que não vão fazer. Ao não contar todas as coisas que está fazendo, o
governador mente”.
“O governador está preocupado com o dia 5 de outubro. Ele acha que se
falar em racionamento, a população não vai votar nele. Então começa a
inventar uma série de jogadas demagógicas”.
“Na verdade, o racionamento começou há mais de dois meses. A Sabesp já está cortando água em vários pontos da cidade de São Paulo
e em municípios da região metropolitana, como Osasco, Guarulhos, São
Caetano do Sul. Em português, o nome desses cortes é racionamento”.
“Só que essa forma de fazer o racionamento me parece completamente
injusta, pois é dirigida aos pobres; vão deixar os ricos para o fim”.
“O problema não é falta de chuvas, mas a falta de investimento em novos mananciais”.
“A partir da década de 1990, a Sabesp aderiu ao modelo neoliberal e
passou a buscar o lucro a qualquer custo, independentemente dos
direitos fundamentais do homem. Assim, deixou de considerar o
saneamento básico como problema de saúde pública. E passou a encará-lo
como um negócio qualquer”
“A Sabesp se transformou num balcão de negócios. Sucesso total no mundo
dos negócios, fracasso total no mundo sanitário, na saúde pública”.
Quase nove meses se passaram desde essa entrevista e Alckmin continua a rejeitar OFICIALMENTE a possibilidade de racionamento ou rodízio.
Mas a real realidade é outra.
Os moradores de São Paulo — principalmente os das periferias, entre os
quais esta repórter se inclui — sabem que isso é mentira. Eu moro na
Penha, Zona Leste da capital, e por volta das 19h a água some da
torneira e só reaparece por volta das 7h do dia seguinte. Dia a após
dia, há vários meses.
Curiosamente, a grande imprensa não detona Alckmin por isso. E, ainda,
corrobora a versão do governador, jogando a culpa das costas de São
Pedro.
“A mídia ajudou o governador a acobertar as reais razões da crise”,
denuncia Marzeni Pereira da Silva. “Houve a clara preocupação de
poupá-lo, relacionando a falta de água somente à estiagem.”
“No noticiário, a falta de água era atribuída somente à estiagem. Toda
vez que a matéria falava em falta de água, ela vinha junto com a
previsão do tempo, numa manobra para relacionar uma coisa à outra e não
deixar espaço para questionamento”, observa Marzeni.
“Tudo era efeito do clima. Não havia a preocupação em mostrar que a
crise hídrica decorria de falta de planejamento do governador Alckmin e
de seu antecessor, José Serra.”
“A mídia é cúmplice do governo Alckmin na crise de abastecimento de água em São Paulo”, detona.
Marzeni Pereira da Silva é ativista sindical, trabalha com saneamento
básico e integra a oposição no Sindicato dos Trabalhadores em Água,
Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema-SP). É membro da
corrente LSR – Liberdade Socialismo e Revolução.
Eis a íntegra da nossa entrevista.
Viomundo — O governador culpa a
falta de chuvas pela crise hídrica em São Paulo. Como trabalhador do
setor de água e esgoto, você concorda?
Marzeni Pereira da Silva — De jeito nenhum.
— Por quê?
— É verdade que estamos passando por uma estiagem bastante
severa, mas por período curto, quando comparado a outras regiões do
Brasil. Além disso, a estiagem é um fenômeno natural, que pode ocorrer
em qualquer lugar e que não controlamos. Mas já é possível prevê-la e
prevenir seus efeitos. Ou seja, precisa planejamento, coisa que aqui
não houve.
Não é de hoje que os sistemas de abastecimento de água da Região
Metropolitana de São Paulo trabalham próximo ao limite. Há mais de uma
década especialistas vêm alertando para o risco de colapso, pois há um
crescimento substancial da demanda, sem contrapartida na
disponibilidade.
Para piorar, as perdas por vazamentos na rede ainda são muito altas.
Segundo a Aresp [Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de
São Paulo], estão em torno de 30%. Mesmo que fossem 20%, já seriam
muito altas.
Pouca coisa foi feita no sentido de aumentar a capacidade das represas,
melhorar a eficiência na distribuição, no desenvolvimento de novas
opções de abastecimento e no uso diferenciado da água.
Nos últimos 20 anos, não houve a construção de um único sistema de
tratamento de água na Região Metropolitana de São Paulo. Menos ainda na
preservação e recuperação dos mananciais.
— O governador mentiu para a sociedade?
— Eu não tenho a menor dúvida que sim. O tempo todo ele omitiu a
gravidade do problema. Também deixou o entendimento de que não havia
falta de água e nem a possibilidade de faltar.
Se considerarmos que 50% da população o reelegeu [teve 57% dos votos
dos votos válidos], é porque confia nele. Portanto, se ele afirma que
não tem risco de faltar água, essas pessoas tendem a acreditar. Fator
que induz uma parcela da população a continuar desperdiçando.
No debate da Globo, por exemplo, Alckmin disse:
“… não está faltando água em São Paulo, não vai faltar água em São
Paulo. Nós estamos trabalhando com planejamento, obras, investimento.
As mudanças climáticas atingiram a Califórnia, atingiram a Austrália,
20% dos municípios dos estados brasileiros estão em estado de
emergência ou de calamidade pública e nós aqui, com 22 milhões de
pessoas, a 700 m de altitude, temos garantido abastecimento e temos uma
grande reserva para frente e investimentos!
Só que, nessa data [30 de setembro], vários bairros da região
metropolitana e da capital já estavam com frequente falta de água e
cerca de 65% da primeira parcela do volume morto já tinham sido
utilizados.
Portanto, uma situação muito delicada. Alckmin sabia que não tinha como
garantir que não haveria falta de água e que sabia que havia risco de
colapso total do sistema. Por outro lado, onde está a grande reserva de
água que o governador afirmou ter no debate?
— O que acha comportamento da mídia na crise hídrica paulista?
— A grande mídia teve comportamento parcial o tempo todo. Ela teve a clara preocupação de poupar o governador.
— De que forma?
— No noticiário,a falta de água era atribuída somente à
estiagem. Toda vez que uma matéria falava em falta de água, ela vinha a
previsão do tempo junto.
Ou seja, uma maneira de relacionar uma coisa à outra e não deixar
espaço para questionamento. Tudo era efeito do clima. Não havia a
preocupação em mostrar que a crise hídrica decorria da falta de
planejamento do governador e de seu antecessor, José Serra.
— A mídia ajudou o governador acobertar as razões reais da crise?
— Claro! Não tenho dúvidas quanto a isso. A grande imprensa
procurou passar à população o tempo todo que o problema era geral no
país e que, aparentemente, nada poderia ter sido feito antes.
Pois bem, se nada poderia ter sido feito nos últimos 10 anos para
evitar os efeitos de uma estiagem, então não tem solução, certo? Errado.
Não tem a curtíssimo prazo, como a situação atual exige. Mas a médio e longo prazo tem solução, sim!
— Que medidas poderiam ter sido postas em prática e não foram?
— Várias:
1. Fortalecimento da Sabesp, uma empresa de âmbito estadual, que tem o
melhor corpo técnico e melhor estrutura. Portanto, é preciso eliminar a
terceirização e isso implica contratação de quadro próprio. Já o lucro
deve ser investido no saneamento e não ser desviado pagar dividendos.
Nos últimos 20 anos, foi feito exatamente o inverso: reduziu-se o
número de empregados próprios de cerca 20 mil para 14 mil e
terceirizou-se a maior parte dos serviços, comprometendo a qualidade.
Além disso, parte do lucro que deveria ter sido aplicado no saneamento
foi para os acionistas.
2. Aumentar a coleta e o tratamento dos esgotos e fazer o reuso
planejado dessa água para diversos fins, essencialmente não potáveis.
Não é razoável que, na região metropolitana mais rica do País, grande
parte do esgoto ainda vá para os córregos.
3. Proteção e recuperação dos mananciais. Há conivência dos governos
das diversas esferas quanto à ocupação das áreas de mananciais, e em
alguns casos com construções de classe média. O próprio governo estadual
ocupa essas áreas. Caso concreto é o traçado do Rodoanel Mario Covas,
que passa por vários mananciais.
Faz-se necessário um plano habitacional que ofereça alternativa para as
famílias pobres que moram em áreas de risco e de mananciais. Além
disso, é preciso reflorestar e proteger o que restou das matas ciliares.
Para que essas ações tenham sucesso, a especulação imobiliária tem que
ser combatida fortemente.
— A mídia foi cúmplice do governador na crise hídrica?
— Evidentemente que sim. A mídia foi cúmplice, já que pouco ou
quase nada divulgou sobre o histórico de deficiência no sistema de
abastecimento de água.
Assisti várias reportagens e não vi nenhuma informando que o Cantareira
quase secou entre 2003 e 2004. Naquela época, houve rodízio, foram
provocadas chuvas artificiais e o governador era também o Alckmin.
Pouco se falou também sobre os compromissos firmados em 2004 para a
concessão da outorga do Cantareira e que não foram cumpridos, como a
construção de barragens na bacia do Rio Piracicaba, redução de
dependência desse sistema, reuso de água, etc.
Outra coisa foi a conivência ou cumplicidade com a administração
perigosa ou inconsequente da pouca água disponível, a partir do início
do ano de 2014, em função da Copa do Mundo e dos interesses eleitorais.
Os especialistas em recursos hídricos, saúde pública e saneamento com
os quais eu conversei foram unânimes em dizer que usar todo o estoque
de água poderia ser perigoso. Ainda, que o correto seria tomar medidas
para garantir, pelo menos, a segurança no abastecimento até março de
2015. A mídia deu pouca importância para isso.
— Um rodízio oficial que atingisse todos os moradores na Região Metropolitana de São Paulo?
— Seria uma medida adequada. Transparência num caso tão sério quanto esse é essencial!
— Tem leitor que a essa altura está dizendo: “Ah, mas está faltando água em outros estados…” O que diria a essas pessoas?
— Até o momento não ouvi ninguém colocando a culpa pela falta de chuvas no governador ou na Sabesp, o que seria realmente absurdo.
Mas o Alckmin tem culpa pela falta de planejamento voltado para os
interesses da população, pela política de sucateamento da Sabesp com
redução de pessoal e terceirização dos serviços. Portanto, pela falta de
água Alckmin tem culpa, sim. Pela falta de chuva, não.
— E agora?
— Agora é hora de a população participar e dizer o que quer.
Vejo duas maneiras de isso ocorrer: uma como indivíduo e outra como ser
coletivo.
Como indivíduo, a pessoa pode mudar hábitos para reduzir o consumo,
reusar a água e captar água de chuva para diversas atividades não
potáveis. Para esta forma de participação já existem diversos materiais
sendo distribuídos pela própria Sabesp e propaganda nos meios de
comunicação.
Como ser coletivo, nós podemos exigir medidas de curto, médio e longo prazo. São medidas de muito maior efetividade e alcance.
— Por exemplo.
— Há várias:
1. Em caráter de emergência, incentivo à coleta de água de chuva, com
distribuição de hipoclorito, caixas d’água e filtros para a população
de baixa renda. Distribuição prioritária de água para as casas,
hospitais, postos de saúde, escolas e creches.
2. Construir comitês populares de luta pela água nos bairros, que
tenham o direito de fiscalizar e deliberar sobre as prioridades do uso
da água. Criação de um conselho estadual de usuários com representantes
de movimentos urbanos, sindicatos e bairros afetados para fiscalizar e
deliberar sobre as questões de abastecimento de água e saneamento.
3. Exigir a preservação e recuperação dos mananciais e nascentes. Um
plano de reflorestamento. Plano habitacional que ofereça alternativa às
famílias que moram em áreas de risco e combate à especulação
imobiliária.
4. Combate às perdas de água com utilização de materiais mais modernos
(como o PEAD*), com fim da terceirização e do cartel das empresas
prestadoras de serviço.
5. Exigir coleta e tratamento de 100% dos esgotos e reuso planejado da água do esgoto tratado (para fins não potáveis).
6. Reestatização imediata da Sabesp e de outras empresas de saneamento,
sob o controle e gestão dos trabalhadores. Todo o lucro da Sabesp e
das outras empresas tem que ser investido no saneamento. Água não pode
ser mercadoria!
7. Constituir uma Comissão Popular de Inquérito, composta por
representantes dos movimentos sociais e trabalhadores da Sabesp e outras
empresas de saneamento, para apurar a responsabilidade pela crise.
8. Pedir a responsabilização criminal do governo do Estado pela crise
hídrica. Podemos ter uma crise de saúde pública, já temos danos
irreversíveis ao meio ambiente e gente perdendo o emprego. E tudo isso
poderia ter sido evitado!
*Polietileno de Alta Densidade
Conceição Lemes
No Viomundo
Um comentário:
6740O problema do Pinóquio não era a falta de água e sim onde e o que fazer com a bosta.
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