Os
médicos ouvidos nestes últimos três dias debitam ao fumo e ao álcool a
enfermidade que castiga Lula. As terríveis verdades são muitas, como as
cabeças da hidra. A enfermidade, desde Hipócrates, tem sido vista como o
resultado de um conflito. Em primeiro lugar, há o conflito entre o
desenho evolutivo do homem e sua construção individual. As descobertas
recentes mostram que esse conflito se inicia na combinação genética. Mas
é preciso também ver a doença, como indicam outros estudiosos, no
confronto entre o organismo e o ambiente, como atestam as doenças
profissionais. O ambiente não é só o físico, com as alterações do clima e
a poluição. Mais duro talvez seja o ambiente da vida em comum – a
circunstância moral em que os homens se movem.
No
caso dos homens públicos, as pressões do dia-a-dia e as noites
indormidas, nas duras exigências da política, costumam ser fatais.
Essas pressões, quando as saídas se estreitam, podem levar muitos ao
suicídio, como ocorreu a Getúlio Vargas, em 1954, a José Manuel
Balmaceda, do Chile em 1891, e provavelmente a Allende, em 1973. No
caso, essa fatalidade costuma ser indiferente às questões éticas. Tanto
podem levar ao suicídio as grandes causas quanto a demência, como
ocorreu a Nero, entre outros.
Normalmente,
essas tensões são indutoras de enfermidades graves. Em nossa
contemporaneidade – à parte casos suspeitos, como os da morte de Jango,
Lacerda e Juscelino – assistimos ao sofrimento e ao fim de Teotônio
Vilela, Mário Covas, Quércia, José Alencar, e Itamar Franco, todos eles
atingidos pelo traiçoeiro, como ao câncer se referiu outra de suas
vítimas, José Aparecido de Oliveira. Com Itamar, que estava em seu
momento mais alto da vida, a leucemia foi mais cruel, não lhe dando
muita chance para a luta. José Aparecido estava fora do poder, mas as
vicissitudes dos últimos anos, quando viu a grande criação de sua vida
política – a CPLP – estiolada pela sabotagem do governo Fernando
Henrique – devem ter contribuído para a vitória do traiçoeiro.
O
caso de Tancredo – que poderia ter exercido a Presidência, não fossem
os erros médicos, tão toscos que levam à suspeição – foi de outra
etiologia e diferente patologia, mas é evidente que as duras tensões
acumuladas, ao longo da vida, contribuíram para que o seu organismo
fosse menos resistente, naqueles 38 dias fatais.
Naqueles
sete meses, que vão de 14 de agosto de 1984 – quando deixou o governo
de Minas – à véspera da frustrada posse na Presidência, Tancredo foi
exposto a pressões que nenhum outro político brasileiro sofrera. Elas
foram quase intoleráveis, nas articulações para a consolidação da
Aliança Democrática e, em seguida à eleição, na formação do Ministério.
Testemunha daqueles dias finais, em que as tensões se fizeram mais
duras, sei que os constrangimentos – por mais resistente ele fosse –
ajudaram a arranhar-lhe os nervos, debilitar suas células e provocar o
intenso conflito entre a força de seu caráter e as injunções da
inesperada enfermidade.
A
História está repleta desses dramas. O caso de Evita Perón é um deles, o
de Kirchner, outro. Antes deles, também na Argentina, houve Yrigoyen, o
pioneiro da política antiimperialista continental e hoje esquecido. O
grande presidente, o primeiro a nacionalizar o petróleo, com a criação
do YPF, foi destituído em sua segunda presidência – tal como Vargas,
pelas pressões da Standard Oil, e tal como Vargas, com a traição de
generais a serviço de Washington. É bom anotar que o YPF, a Petrobrás
argentina, assumiu o monopólio do mercado do petróleo em 1º de agosto de
1930, e em 6 de setembro o general Uriburu deu o golpe de Estado.
Yrigoyen não se matou, mas foi confinado na Ilha de Martin Garcia, onde
a depressão lhe corroeu a saúde, para matá-lo em 1933. Eva pode ter
sido, e foi, a adolescente sonhadora, que se aproximou de um homem
poderoso e o tornou mais poderoso ainda, instigando-o com sua própria
determinação e coragem. Uma vez no poder, ela recuperou a ligação com o
povo a que pertencia, como filha bastarda de um capataz de fazenda e de
uma dona de pensão, e neta de carroceiro basco e de uma vivandeira,
durante a guerra de extermínio contra os índios do norte, movida pelo
general Julio Roca. No poder, ela se confrontou não só com os inimigos
de Perón, mas também com correligionários do general, que não suportavam
a sua influência ideológica. Foram pressões fortes, algumas talvez do
próprio Perón, que alimentaram o câncer que a matou.
Estamos
agora assistindo à resistência de Hugo Chávez à doença. Seus inimigos
exultam e esperam. Seus partidários temem o pior, mas é certo que ele
vem lutando com coragem, como lutaram, e lutam os nossos.
Felizmente,
uma providencial dor de garganta levou Lula aos médicos, e as suas
chances de cura são iguais às que ajudaram Dilma, que venceu a
enfermidade e está em plena e bem conduzida atividade como presidente da
República – uma república que, de acordo com a síntese dura de Jânio
Quadros, “está, desde Deodoro, sob o signo do infortúnio”. Mas não há
dúvida que, também em seu caso, as tensões atuaram a fim de abrir-lhe o
corpo à doença.
Polícia contra polícia
É
constrangedor que, no mesmo dia em que observadores internacionais
anunciam que o Brasil, neste fim de ano, ultrapassará a orgulhosa Grã
Bretanha, como a sexta economia do mundo, o deputado Marcelo Freixo seja
obrigado a refugiar-se no exterior, ameaçado de morte por “milicianos”,
ou seja, por políticos e bandidos, associados às forças policiais do
Rio de Janeiro.
É um desaforo e
um desafio ao Estado, que não pode continuar sem resposta dura e
definitiva. A solução está em criar nova organização policial civil,
subordinada diretamente ao governo da União, bem remunerada, formada por
homens de coragem e idoneidade moral, que possa, a pedido dos estados,
identificar e levar à justiça esses criminosos. A lei penal deve ser
também revista, a fim de punir, com mais rigor e celeridade, os que,
pagos para proteger a sociedade, tornam-se matadores vulgares, como os
assassinos dos pobres da periferia, e de juízes, como Patrícia Acioly – e
que pretendem matar o deputado Marcelo Freixo.
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