Por Leandro Fortes - CartaCapital
"O livro mostra que FHC é um caso de crime continuado"
A obra chegou às livrarias no sábado 31, mas antes mesmo de sua
publicação tem causado desconforto no ninho tucano. Luiz Fernando
Emediato, publisher da Geração Editorial, responsável pela
edição, tem recebido recados. O último, poucos dias atrás, foi direto:
um cacique do PSDB telefonou ao editor para pedir o cancelamento do
livro e avisou que a legenda havia contratado um advogado para impedir a
publicação, caso o apelo não fosse atendido.
Tanto alvoroço deve-se ao lançamento de O Príncipe da Privataria –
A história secreta de como o Brasil perdeu seu patrimônio e Fernando
Henrique Cardoso ganhou sua reeleição, do jornalista Palmério Dória. O
título da obra faz alusão à alcunha de “príncipe dos sociólogos”,
sugestão de amigos do ex-presidente, e ao termo privataria, menção ao
processo de privatização comandado pelo PSDB nos anos 1990 e eternizado
por outra obra da Geração Editorial, A Privataria Tucana, de Amaury
Ribeiro Jr.
Há razão para os temores dos aliados de FHC. Na obra, Dória reconstituiu
um assunto que os tucanos prefeririam ver enterrado: a compra de votos
no Congresso para a emenda da reeleição que favorecia o ex-presidente. E
detalha o “golpe da barriga” que o deixou refém das Organizações Globo,
em especial, e do resto da mídia durante seus dois mandatos.
A maior novidade é a confirmação da identidade do Senhor X, a fonte
anônima responsável pela denúncia do esquema de compra de votos para a
emenda da reeleição. O ex-deputado federal Narciso Mendes, do PP do
Acre, precisou passar por uma experiência pessoal dolorosa (esteve entre
a vida e a morte depois de uma cirurgia) para aceitar expor-se e contar
novos detalhes do esquema.
A operação, explica Mendes no livro, foi montada para garantir a
permanência de FHC na Presidência e fazer valer o projeto de 20 anos de
poder dos tucanos. Para tanto, segundo o ex-parlamentar, foram
subornados centenas de parlamentares, e não apenas a meia dúzia de
gatos-pingados identificados pelo jornalista Fernando Rodrigues, da
Folha de São Paulo, autor das reportagens que apresentaram em 1997 as
gravações realizadas pelo Senhor X, apelido criado pelo repórter para
preservar a identidade do colaborador, então deputado do antigo PPB.
Os mentores da operação que pagou 200 mil reais a cada deputado comprado
para aprovar a reeleição, diz o Senhor X, foram os falecidos Sergio
Motta, ex-ministro das Comunicações, e Luís Eduardo Magalhães, filho de
Antonio Carlos Magalhães e então presidente da Câmara dos Deputados. Em
maio de 1997, a Folha publicou a primeira reportagem com a transcrição
da gravação de uma conversa entre os deputados Ronivon Santiago e João
Maia, ambos do PFL do Acre. No áudio, a dupla confessava ter recebido
dinheiro para votar a favor da emenda. Naquele momento, o projeto tinha
sido aprovado na Câmara e encaminhado para votação no Senado.
À época, a oposição liderada pelo PT tentou instalar uma CPI para apurar
as denúncias. Mendes resume os acontecimentos a Dória e ao jornalista
Mylton Severiano, que participou das entrevistas com o ex-deputado em
Rio Branco: “Nem o Sérgio Motta queria CPI, nem o Fernando Henrique
queria CPI, nem o Luís Eduardo Magalhães queria CPI, ninguém queria.
Sabiam que, estabelecida a CPI, o processo de impeachment ou no mínimo
de anulação da emenda da reeleição teria vingado, pois seria comprovada a
compra de votos”.
E assim aconteceu. A denúncia foi analisada por uma única comissão de
sindicância no Congresso, que apresentou um relatório contrário à
instalação de uma CPI. O assunto foi enviado ao Ministério Público
Federal (MPF), então sob o comando de Geraldo Brindeiro. O procurador
fez jus ao apelido de “engavetador-geral”, nascido da sua reconhecida
leniência em investigar casos de corrupção do governo FHC. O MP nunca
instalou um processo de investigação, a mídia nunca demonstrou o furor
investigatório que a notabilizaria nestes anos de administração do PT e o
Congresso aprovou a emenda, apesar da fraude.
O Príncipe da Privataria tenta reconstituir os passos da história
que levou uma repórter da TV Globo em Brasília, a catarinense Miriam
Dutra, a um longo exílio de oito anos na Europa. Repleta de detalhes, a
obra reconstituiu o marco zero dessa trama, “nalgum dia do primeiro
trimestre de 1991”, quando o jornalista Rubem Azevedo Lima, ao caminhar
por um dos corredores do Senado, ouviu gritos do gabinete do então
senador Fernando Henrique Cardoso. “Rameira, ponha-se daqui pra fora!”,
bradava o então parlamentar, segundo relato de Lima, ex-editorialista da
Folha de S.Paulo, enquanto de lá saía a colega da TV Globo, trêmula e
às lágrimas. A notícia de um suposto filho bastardo não era apenas um
problema familiar, embora não fosse pouco o que o tucano enfrentaria
nessa seara. A mulher traída era a socióloga Ruth Cardoso, respeitada no
mundo acadêmico e político. O caso extraconjugal poderia atrapalhar os
planos futuros do senador. Apesar de se apresentar como um “presidente
acidental”, em um tom de desapego, FHC sempre se imaginou fadado ao
protagonismo na vida nacional.
Escreve Dória: “Entra em cena um corpo de bombeiros formado por Sérgio
Motta, José Serra e Alberico de Souza Cruz – os dois primeiros, cabeças
do “projeto presidencial”; o último, diretor de jornalismo da Rede Globo
e futuro padrinho da criança”. Motta e Serra bolaram o plano de exílio
da jornalista, mas quem tornou possível a operação foi Souza Cruz, de
atuação memorável na edição fraudulenta do debate entre Collor e Lula na
tevê da família Marinho às vésperas do segundo turno. A edição amiga,
comandada diretamente por Roberto Marinho, dono da emissora, e exibida
em todos os telejornais do canal, levaria o “caçador de marajás” ao
poder. Acusado de corrupção, Collor renunciaria ao mandato para evitar o
impeachment.
Miriam Dutra e o bebê foram viver na Europa e o caminho político de FHC
foi novamente desinterditado. Poucos anos depois, ele se tornaria
ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, surfaria no sucesso do
Plano Real, a ponto de renegar a importância do falecido ex-presidente
na implementação da estabilidade monetária no País, e venceria a eleição
de 1994 no primeiro turno.
Por muito tempo, apesar de o assunto circular nas principais rodas
políticas de Norte a Sul, Leste e Oeste, imperou nos principais meios de
comunicação um bloqueio a respeito do relacionamento entre o presidente
e a repórter. Há um pressuposto não totalmente verdadeiro de que a
mídia brasileira evita menções à vida particular dos políticos, ao
contrário das práticas jornalísticas nos EUA e Reino Unido. Não
totalmente verdadeiro, pois a regra volta e meia é ignorada quando se
trata dos adversários dessa mesma mídia.
No fim, o esforço para proteger FHC mostrou-se patético. Só depois da
morte de Ruth Cardoso, em 2008, o ex-presidente decidiu assumir a
paternidade do filho da jornalista. Mas um teste de DNA, feito por
pressão dos herdeiros do tucano, provou que a criança não era dele.
Dória entrevistou inúmera personalidades, entre elas o ex-presidente da
República Itamar Franco, o ex-ministro e ex-governador do Ceará Ciro
Gomes e o senador Pedro Simon, do PMDB. Os três, por variadas razões,
fizeram revelações polêmicas sobre FHC e o quadro político brasileiro.
Há outras declarações pouco abonadoras da conduta do ex-presidente. A
obra trata ainda do processo de privatização, da tentativa de venda da
Petrobras e do plano de entrega da Caixa Econômica Federal e do Banco do
Brasil ao setor privado. “O livro mostra que FHC é um caso de crime
continuado”, resume o autor.
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