Um país que tem Nilo Batista não pode nomear Luiz Fux para o Supremo
22 de agosto de 2013 | 21:10
Ontem, “aproveitando” os problemas técnicos que deixaram o blog
fora do ar, assisti boa parte da sessão do Supremo Tribunal Federal.
Confesso ter ficado envergonhado do comportamento da maioria dos que deveriam ser os mais altos guardiões da ideia de Direito e Justiça deste país.
Já nem falo de Joaquim Barbosa, com sua estudada cara feroz, à qual não falta sequer a mandíbula contraída, como a rosnar, e os esgares quase debochados.
Falo no clima de programa da finada Hebe Camargo, com rasgações de seda e data vênias com que se portaram diversos dos ministros que, não importa quem fossem, estavam ali discutindo o encarceramento de pessoas.
Era um “clube amável” decidindo, com guardanapos e bom-tom, sobre a vida alheia.
Chegou a dar pena ver o ministro Ricardo Lewandowski ter de lembrá-lo, falando às paredes que estavam, para alguns réus, julgando o último e único apelo que poderiam fazer para ao menos mitigarem-se suas penas.
Deu-me nojo ter amado o Direito e alegria de ter abandonado a faculdade, depois de um único semestre, na UERJ.
Ver um Ministro do Supremo Tribunal dizer que “faria diferente”, mas não ia mexer no que estava feito, quando isso implica em privar uma pessoa – detestável pessoa, aliás – da liberdade por anos só pode enojar.
Não discuto a ciência jurídica destes ministros, porque eles a têm mais que eu.
Questiono-lhes o incontrolável sentido de Justiça que deve dominar a mente e o coração de um julgador, que brande a espada da lei sobre seus irmãos e irmãs da espécie humana.
Ainda que as regras legais, por qualquer deformidade que tenham, não permitam a um juiz reformar, por tecnicalidades, sentenças que admite equívocas, ao menos tem ele o dever de proclamar a injustiça a que se vê, sob a vara da lei, a confirmar.
Lembra-me o dia em que, estarrecido, vi um desembargador dizer que o tribunal que integrava estava ali para julgar com o Direito, não com a Justiça.
Doe-me, sobretudo, ver o meu Rio de Janeiro representado ali naquele Tribunal pela nulidade canastrã de Luiz “Mato no Peito” Fux que, como outros, tratou seu voto – e a divergência com outra posição (não foi o único, sejamos justos) como apenas uma questão de pedir desculpas (vênias) e nem sequer justificar o porquê do seu voto.
Então, para desagravar o Direito de pequenezas assim, transcrevo abaixo a entrevista de um homem que, se não fora necessária a cabala política mesquinha para ir às cortes supremas deste país, certamente estaria sentado numa daquelas cadeiras: Nilo Batista.
Discípulo de Heleno Fragoso, professor titular da UERJ e da UFRJ, um dos mais reconhecidos penalistas deste país, Nilo poderia estar deitando falação sobre artigos, parágrafos e alíneas que sabe de cor e salteado.
Mas está no mesmo lugar onde estava, quando guri em Juiz de Fora, entrou no PTB varguista para defender quem ainda hoje ele defende.
Não se submeteu ao processo de esmagamento com que são feitas as leis, as salsichas e os ministros das altas cortes.
E não tem, senão pela urbanidade com que maneja suas ideias como lanças, de pedir data vênia para ser omisso.
Leiam a entrevista e vejam que tristeza ter, em lugar dele, um Fux naquela Corte:
Isso é a prova da diversidade política destas manifestações. Elas são um saco de gato. Desde grupos neonazistas a uma juventude bem intencionada, mas politicamente ingênua. Eu me preocupo com a proliferação do fascismo. A manifestação não discute política, mas trata de sentimentos. Essa reação é um subcapítulo deste intenso punitivismo cuja origem, na verdade, não está no plano da subjetividade. O sistema penal do capitalismo industrial era diferente deste capitalismo que chamo de barbárie, financeiro. Nunca foi tão visível a participação do sistema penal no controle, no extermínio das massas miserabilizadas, desses contingentes inempregáveis – porque não podemos dizer mais que são desempregados , são pessoas que nunca mais vão conseguir algum trabalho ou sequer conseguiram algum em sua existência.
Como se dá o controle desses trabalhadores que não conseguem emprego?
Toda a forma de economia informal, toda estratégia de sobrevivência da pobreza é objeto de uma iniciativa que tem um respaldo punitivo. Isso vai desde a economia informal do comércio de drogas ilícitas até economias que não são propriamente regulares, mas também não são ilícitas, do ponto de vista penal. É só dar uma olhada no que foi o Choque de Ordem [programa da Prefeitura do Rio de Janeiro, que, segundo a Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop), busca ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de postura municipal] no Rio de Janeiro. É só darmos uma olhada nas praias do Rio de Janeiro: saiu a quituteira do Cantagalo, quase que o homem que vende chá e suco de limão foi impedido, mas as grandes empresas multinacionais estão lá. Os leitores do jornal O Globo têm uma cadeirinha, academias, agências; as barracas de praia agora têm sua padronização, ou seja, tirou toda a espontaneidade, a estética que era muito compatível à cidade. A cidade do Rio de Janeiro tem a maior população negra do mundo, mas tudo isso vem sendo vítima de uma assepsia que, aos poucos, vai tomando conta. O que acontece logo depois que descem [das favelas] os corpos da pacificação? Sobe o pessoal da Light [Empresa de Serviços de Eletricidade], da Net. A Light aumentou em 10% o seu faturamento depois que foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), como aponta matéria no Valor Econômico. Enquanto isso, os flanelinhas estão sendo ameaçados, os camelôs estão sendo expulsos. É importante lembrar que no meio de tudo isso estão os meios de comunicação. Eles são a comissão de frente desta escola de samba que é o punitivismo pós-moderno. Para eles, este ato de poder, que é o mais duro, o mais violento, virou o paradigma de sociabilidade. É uma falsa solução que, às vezes, é dirigida a problemas reais, mas também a falsos problemas. E a punição justifica todos eles.
Como o sr. analisa os gritos de que o Brasil é o país da impunidade?
Há muito tempo escrevi que impunidade é um verbete da direita. É só olharmos para o passado e para o presente do país que podemos ver que a punição é crescente. Quando fizemos a Constituição, em 1988, em um dos primeiros dispositivos falávamos sobre uma sociedade livre, justa e igualitária. Neste momento, nós tínhamos 100 mil presos. Hoje nós estamos caminhando para 600 mil presos e, além disso, estamos com uma sociedade vigiada. A judicialização do cotidiano é um problema seríssimo. Todas as utopias, todos os avanços eram contra o sistema penal, hoje caminhamos contra isso. Privilegiamos a judicialização da vida cotidiana, restringimos o fenômeno da violência aos códigos legais. Mas isso não é particularidade do conservadorismo, isso pega muitos setores que pensam ser de esquerda, muitas pessoas das academias. As pessoas não se dão conta de que muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático, sinaliza autoritarismo. É só olharmos para o século 20: toda vez que se teve muita gente fardada, e gente fardada de preto, a coisa não estava bem, quer dizer, estava muito difícil.
Como podemos recortar isso para a redução da maioridade penal, já que as pessoas acham que a idade de 18 anos é uma forma de tornar impunes os crimes que envolvem jovens?
Para mim, este caso é cláusula pétrea. É um retrocesso enorme estender o sofrimento punitivo para o jovem. Além disso, é importante lembrar que ele vai ser seletivo, porque o sistema penal pune somente os jovens pobres. O interessante é analisar a mídia, por exemplo, quando expõe raros casos de meninos ricos e brancos sofrendo algum tipo de pena, faz um alarde enorme em casos que envolvem jovens como este. O que isso significa? É simplesmente para dar a impressão de que o sistema penal é igual para todos, mas não é. Ele é seletivo, vai pelo estereótipo.
Como o sistema penal faz essa seleção?
É feita pela agência policial. Os estereótipos do infrator como um garoto pobre e negro batem perfeitamente. E é esta a porta de entrada. Mas, de vez em quando, tem que ter um rico branco sendo linchado em praça pública para legitimar o massacre das populações afrodescententes encarceradas. Quem diz que tem impunidade no país é porque nunca foi a uma penitenciária. É porque não conhece essa realidade de perto. Por outro lado, sempre que tem algum crime envolvendo um adolescente menor de 18 anos, ele serve para estimular essa campanha, esse clamor pela redução da maioridade penal. Se formos analisar, isso é algo muito burro, muito irracional. O sistema penitenciário é um reprodutor da identidade infracional. Isso já é comprovado em pesquisa que analisa o elevado índice de reincidência penitenciária. Uma pesquisa feita em Brasília, com atos relacionados ao furto, por exemplo, mostra que quando a pessoa entra na penitenciária – ou seja, cumpre pena com privação da liberdade – tem cerca de 70% de reincidência, e quando ela não é presa – aqueles que cumpriram pena sem a privação da liberdade, as chamadas penas alternativas – esse índice reduz pela metade.
Qual é a sua avaliação das casas de detenção destinadas ao jovem?
Tanto essas casas de detenção quanto as penitenciárias não recuperam ninguém. A privação de liberdade como um todo é fracassada. Ela é uma pena moderna, veio com o capitalismo industrial. A privação de liberdade veio como metonímia da pena. Mas ela nunca existiu antes, nem na Antiguidade nem na Idade Média. Ela começou recisamente como um controle das populações empobrecidas pela superação do mercantilismo sobre a manufatura e, logo depois, pela Revolução Industrial, na Inglaterra. No século 18, ainda estava disputando espaço com as penas do Antigo Regime, e somente no século 19 ela ganhou espaço. A partir daí, a prisão privativa de liberdade surge. Ela vem para punir a população pobre das grandes cidades em um momento em que se começou a criminalizar a pobreza, a vadiagem e as greves. E é nesse contexto que surgem os primeiros presídios.
Como o sr. avalia o Estatuto da Criança e Adolescente. Por que ele é tão atacado?
A imprensa quer o controle, quer punir o jovem, e o Estatuto veio para garantir os direitos dos jovens que têm uma história de sofrimento, de submissão… A história da justiça da infância e, mais especificamente, da adolescência é uma história terrível. O livro da Vera Malaguti ‘Difíceis ganhos fáceis’, da editora Revan, mostra a história de um jovem que, porque roubou um queijo, passou três anos na prisão; o outro jovem foi privado da liberdade por dois anos e meio porque estava com roupas folgadas, então presumiu-se o furto, como se o reaproveitamento de roupas não fosse uma coisa usual nas classes mais pobres, e por aí vai. O ECA é um diploma legal progressista, avançado, só que ele está sendo torpedeado porque estamos vivendo tempos obscuros, fascistas. Aquela classe média que gostava de rebeldia, de resistência, desapareceu. E, em parte, isso se deve à mídia, a educação que a mídia tem dado é espantosa.
Como nós chegamos a essa idade de 18 anos como marco da maioridade?
Já foi 9, 14 anos…, e o pessoal está querendo voltar a essa realidade vergonhosa agora no Congresso, mas são muitos os argumentos que avaliam a maturidade de um jovem para responder penalmente pelos seus atos. Quando ouço alguém dizer que o adolescente hoje é mais informado do que era o de antigamente, só posso pensar que esta pessoa está repetindo uma grande bobagem. Se fossem estudantes do Caraça [Colégio e Seminário em Mariana (MG)], onde os estudantes liam e ouviam vídeos em latim, conheciam Sócrates e Aristóteles, tudo bem, mas o que vemos hoje é o cara que se educa vendo Malhação [novela da tarde da Rede Globo que tem como público-alvo os adolescentes]. Quem é mais informado? Eu costumo brincar com meus alunos, que quando temos uma pessoa que assiste cinco anos de Malhação, temos um problema posto, e que isso precisa ser trabalhado. Dizer que o telespectador deste tipo de programa é mais informado que o adolescente do passado é um contrassenso, uma burrice. É claro que não é. Vemos hoje a mídia escondendo a política, escondendo tudo, não fazendo debates importantes, não apresentando para estes jovens o mundo real em que vivemos. Podemos trazer para os casos mais recentes, o que está acontecendo nas ruas atualmente: até os cartazes dos manifestantes estão sendo censurados na hora em que aparecem na mídia. Não venham dizer que não tem intencionalidade na edição. E nós temos um histórico no Brasil com edição que é um caso sério.
Existe algum sistema penal que podemos usar como referência para o Brasil? A Argentina, por exemplo, a maioridade penal é de 16 anos, mas o sistema é menos punitivo…
Não. Cada país, dentro da sua sociedade, da cultura punitiva da sua sociedade, toma sua decisão. E muitos países adotam os 18 anos. Mas a imprensa daqui do Brasil, toda vez que tem um garoto de 16 anos sendo acometido pela lei, acha que é muito bom, acha que é uma prova de civilização. Isso, na verdade, é prova de barbárie.
Existe um crime mais usual entre os jovens menores de 18 anos?
Na criminologia não existe etiologia [estudo das causas]. Uma vez uma orientanda fez uma pesquisa com as mulheres presas por conta do tráfico de drogas. No questionário, a menina perguntava ‘o que você mais se lembra dos tempos em que traficava?’, e uma das respostas foi: ‘o que eu me lembro é que meus filhos comiam iogurte todos os dias’. A resposta foi claramente uma atividade de ganho econômico, uma estratégia de sobrevivência. E o que podemos ver mais uma vez é o fracasso do proibicionismo, diante de realidades tão complexas.
O sr. é a favor da legalização das drogas?
Eu sou completamente a favor da legalização de todas as drogas. Já vimos que esse controle atual é um fracasso. A lei das drogas é um reflexo disso: a pena mínima era um ano, passou para três anos, depois para cinco, e agora um deputado quer que sejam oito anos. Mas o que vemos é que os problemas foram só aumentando. Até o general de direita da Guatemala e o presidente da Colômbia já entenderam que não é este o caminho, mas aqui no Brasil ainda não conseguimos ter essa compreensão. Eu tenho uma admiração pelas políticas sociais do PT, apesar de não crer que a distribuição de renda arrecadada seja a coisa mais motivadora e tenho medo que a nova classe C tenha ficado fascista, mas é admirável que 20 milhões de pessoas comam todos os dias. Por outro lado, a política criminal é nota zero. Parece que eles acham que não é possível conceber uma política criminal comprometida com as classes populares. As pessoas moralizam as questões, têm medo de discutir. Por isso o Brizola foi tão criticado quando bancou isso.
(entrevista so Jornal da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, julho/2013)
Por: Fernando Brito
Confesso ter ficado envergonhado do comportamento da maioria dos que deveriam ser os mais altos guardiões da ideia de Direito e Justiça deste país.
Já nem falo de Joaquim Barbosa, com sua estudada cara feroz, à qual não falta sequer a mandíbula contraída, como a rosnar, e os esgares quase debochados.
Falo no clima de programa da finada Hebe Camargo, com rasgações de seda e data vênias com que se portaram diversos dos ministros que, não importa quem fossem, estavam ali discutindo o encarceramento de pessoas.
Era um “clube amável” decidindo, com guardanapos e bom-tom, sobre a vida alheia.
Chegou a dar pena ver o ministro Ricardo Lewandowski ter de lembrá-lo, falando às paredes que estavam, para alguns réus, julgando o último e único apelo que poderiam fazer para ao menos mitigarem-se suas penas.
Deu-me nojo ter amado o Direito e alegria de ter abandonado a faculdade, depois de um único semestre, na UERJ.
Ver um Ministro do Supremo Tribunal dizer que “faria diferente”, mas não ia mexer no que estava feito, quando isso implica em privar uma pessoa – detestável pessoa, aliás – da liberdade por anos só pode enojar.
Não discuto a ciência jurídica destes ministros, porque eles a têm mais que eu.
Questiono-lhes o incontrolável sentido de Justiça que deve dominar a mente e o coração de um julgador, que brande a espada da lei sobre seus irmãos e irmãs da espécie humana.
Ainda que as regras legais, por qualquer deformidade que tenham, não permitam a um juiz reformar, por tecnicalidades, sentenças que admite equívocas, ao menos tem ele o dever de proclamar a injustiça a que se vê, sob a vara da lei, a confirmar.
Lembra-me o dia em que, estarrecido, vi um desembargador dizer que o tribunal que integrava estava ali para julgar com o Direito, não com a Justiça.
Doe-me, sobretudo, ver o meu Rio de Janeiro representado ali naquele Tribunal pela nulidade canastrã de Luiz “Mato no Peito” Fux que, como outros, tratou seu voto – e a divergência com outra posição (não foi o único, sejamos justos) como apenas uma questão de pedir desculpas (vênias) e nem sequer justificar o porquê do seu voto.
Então, para desagravar o Direito de pequenezas assim, transcrevo abaixo a entrevista de um homem que, se não fora necessária a cabala política mesquinha para ir às cortes supremas deste país, certamente estaria sentado numa daquelas cadeiras: Nilo Batista.
Discípulo de Heleno Fragoso, professor titular da UERJ e da UFRJ, um dos mais reconhecidos penalistas deste país, Nilo poderia estar deitando falação sobre artigos, parágrafos e alíneas que sabe de cor e salteado.
Mas está no mesmo lugar onde estava, quando guri em Juiz de Fora, entrou no PTB varguista para defender quem ainda hoje ele defende.
Não se submeteu ao processo de esmagamento com que são feitas as leis, as salsichas e os ministros das altas cortes.
E não tem, senão pela urbanidade com que maneja suas ideias como lanças, de pedir data vênia para ser omisso.
Leiam a entrevista e vejam que tristeza ter, em lugar dele, um Fux naquela Corte:
“impunidade é um verbete da direita”
Como o sr. avalia a presença da pauta da redução da maioridade penal nas recentes manifestações?Isso é a prova da diversidade política destas manifestações. Elas são um saco de gato. Desde grupos neonazistas a uma juventude bem intencionada, mas politicamente ingênua. Eu me preocupo com a proliferação do fascismo. A manifestação não discute política, mas trata de sentimentos. Essa reação é um subcapítulo deste intenso punitivismo cuja origem, na verdade, não está no plano da subjetividade. O sistema penal do capitalismo industrial era diferente deste capitalismo que chamo de barbárie, financeiro. Nunca foi tão visível a participação do sistema penal no controle, no extermínio das massas miserabilizadas, desses contingentes inempregáveis – porque não podemos dizer mais que são desempregados , são pessoas que nunca mais vão conseguir algum trabalho ou sequer conseguiram algum em sua existência.
Como se dá o controle desses trabalhadores que não conseguem emprego?
Toda a forma de economia informal, toda estratégia de sobrevivência da pobreza é objeto de uma iniciativa que tem um respaldo punitivo. Isso vai desde a economia informal do comércio de drogas ilícitas até economias que não são propriamente regulares, mas também não são ilícitas, do ponto de vista penal. É só dar uma olhada no que foi o Choque de Ordem [programa da Prefeitura do Rio de Janeiro, que, segundo a Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop), busca ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de postura municipal] no Rio de Janeiro. É só darmos uma olhada nas praias do Rio de Janeiro: saiu a quituteira do Cantagalo, quase que o homem que vende chá e suco de limão foi impedido, mas as grandes empresas multinacionais estão lá. Os leitores do jornal O Globo têm uma cadeirinha, academias, agências; as barracas de praia agora têm sua padronização, ou seja, tirou toda a espontaneidade, a estética que era muito compatível à cidade. A cidade do Rio de Janeiro tem a maior população negra do mundo, mas tudo isso vem sendo vítima de uma assepsia que, aos poucos, vai tomando conta. O que acontece logo depois que descem [das favelas] os corpos da pacificação? Sobe o pessoal da Light [Empresa de Serviços de Eletricidade], da Net. A Light aumentou em 10% o seu faturamento depois que foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), como aponta matéria no Valor Econômico. Enquanto isso, os flanelinhas estão sendo ameaçados, os camelôs estão sendo expulsos. É importante lembrar que no meio de tudo isso estão os meios de comunicação. Eles são a comissão de frente desta escola de samba que é o punitivismo pós-moderno. Para eles, este ato de poder, que é o mais duro, o mais violento, virou o paradigma de sociabilidade. É uma falsa solução que, às vezes, é dirigida a problemas reais, mas também a falsos problemas. E a punição justifica todos eles.
Como o sr. analisa os gritos de que o Brasil é o país da impunidade?
Há muito tempo escrevi que impunidade é um verbete da direita. É só olharmos para o passado e para o presente do país que podemos ver que a punição é crescente. Quando fizemos a Constituição, em 1988, em um dos primeiros dispositivos falávamos sobre uma sociedade livre, justa e igualitária. Neste momento, nós tínhamos 100 mil presos. Hoje nós estamos caminhando para 600 mil presos e, além disso, estamos com uma sociedade vigiada. A judicialização do cotidiano é um problema seríssimo. Todas as utopias, todos os avanços eram contra o sistema penal, hoje caminhamos contra isso. Privilegiamos a judicialização da vida cotidiana, restringimos o fenômeno da violência aos códigos legais. Mas isso não é particularidade do conservadorismo, isso pega muitos setores que pensam ser de esquerda, muitas pessoas das academias. As pessoas não se dão conta de que muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático, sinaliza autoritarismo. É só olharmos para o século 20: toda vez que se teve muita gente fardada, e gente fardada de preto, a coisa não estava bem, quer dizer, estava muito difícil.
Como podemos recortar isso para a redução da maioridade penal, já que as pessoas acham que a idade de 18 anos é uma forma de tornar impunes os crimes que envolvem jovens?
Para mim, este caso é cláusula pétrea. É um retrocesso enorme estender o sofrimento punitivo para o jovem. Além disso, é importante lembrar que ele vai ser seletivo, porque o sistema penal pune somente os jovens pobres. O interessante é analisar a mídia, por exemplo, quando expõe raros casos de meninos ricos e brancos sofrendo algum tipo de pena, faz um alarde enorme em casos que envolvem jovens como este. O que isso significa? É simplesmente para dar a impressão de que o sistema penal é igual para todos, mas não é. Ele é seletivo, vai pelo estereótipo.
Como o sistema penal faz essa seleção?
É feita pela agência policial. Os estereótipos do infrator como um garoto pobre e negro batem perfeitamente. E é esta a porta de entrada. Mas, de vez em quando, tem que ter um rico branco sendo linchado em praça pública para legitimar o massacre das populações afrodescententes encarceradas. Quem diz que tem impunidade no país é porque nunca foi a uma penitenciária. É porque não conhece essa realidade de perto. Por outro lado, sempre que tem algum crime envolvendo um adolescente menor de 18 anos, ele serve para estimular essa campanha, esse clamor pela redução da maioridade penal. Se formos analisar, isso é algo muito burro, muito irracional. O sistema penitenciário é um reprodutor da identidade infracional. Isso já é comprovado em pesquisa que analisa o elevado índice de reincidência penitenciária. Uma pesquisa feita em Brasília, com atos relacionados ao furto, por exemplo, mostra que quando a pessoa entra na penitenciária – ou seja, cumpre pena com privação da liberdade – tem cerca de 70% de reincidência, e quando ela não é presa – aqueles que cumpriram pena sem a privação da liberdade, as chamadas penas alternativas – esse índice reduz pela metade.
Qual é a sua avaliação das casas de detenção destinadas ao jovem?
Tanto essas casas de detenção quanto as penitenciárias não recuperam ninguém. A privação de liberdade como um todo é fracassada. Ela é uma pena moderna, veio com o capitalismo industrial. A privação de liberdade veio como metonímia da pena. Mas ela nunca existiu antes, nem na Antiguidade nem na Idade Média. Ela começou recisamente como um controle das populações empobrecidas pela superação do mercantilismo sobre a manufatura e, logo depois, pela Revolução Industrial, na Inglaterra. No século 18, ainda estava disputando espaço com as penas do Antigo Regime, e somente no século 19 ela ganhou espaço. A partir daí, a prisão privativa de liberdade surge. Ela vem para punir a população pobre das grandes cidades em um momento em que se começou a criminalizar a pobreza, a vadiagem e as greves. E é nesse contexto que surgem os primeiros presídios.
Como o sr. avalia o Estatuto da Criança e Adolescente. Por que ele é tão atacado?
A imprensa quer o controle, quer punir o jovem, e o Estatuto veio para garantir os direitos dos jovens que têm uma história de sofrimento, de submissão… A história da justiça da infância e, mais especificamente, da adolescência é uma história terrível. O livro da Vera Malaguti ‘Difíceis ganhos fáceis’, da editora Revan, mostra a história de um jovem que, porque roubou um queijo, passou três anos na prisão; o outro jovem foi privado da liberdade por dois anos e meio porque estava com roupas folgadas, então presumiu-se o furto, como se o reaproveitamento de roupas não fosse uma coisa usual nas classes mais pobres, e por aí vai. O ECA é um diploma legal progressista, avançado, só que ele está sendo torpedeado porque estamos vivendo tempos obscuros, fascistas. Aquela classe média que gostava de rebeldia, de resistência, desapareceu. E, em parte, isso se deve à mídia, a educação que a mídia tem dado é espantosa.
Como nós chegamos a essa idade de 18 anos como marco da maioridade?
Já foi 9, 14 anos…, e o pessoal está querendo voltar a essa realidade vergonhosa agora no Congresso, mas são muitos os argumentos que avaliam a maturidade de um jovem para responder penalmente pelos seus atos. Quando ouço alguém dizer que o adolescente hoje é mais informado do que era o de antigamente, só posso pensar que esta pessoa está repetindo uma grande bobagem. Se fossem estudantes do Caraça [Colégio e Seminário em Mariana (MG)], onde os estudantes liam e ouviam vídeos em latim, conheciam Sócrates e Aristóteles, tudo bem, mas o que vemos hoje é o cara que se educa vendo Malhação [novela da tarde da Rede Globo que tem como público-alvo os adolescentes]. Quem é mais informado? Eu costumo brincar com meus alunos, que quando temos uma pessoa que assiste cinco anos de Malhação, temos um problema posto, e que isso precisa ser trabalhado. Dizer que o telespectador deste tipo de programa é mais informado que o adolescente do passado é um contrassenso, uma burrice. É claro que não é. Vemos hoje a mídia escondendo a política, escondendo tudo, não fazendo debates importantes, não apresentando para estes jovens o mundo real em que vivemos. Podemos trazer para os casos mais recentes, o que está acontecendo nas ruas atualmente: até os cartazes dos manifestantes estão sendo censurados na hora em que aparecem na mídia. Não venham dizer que não tem intencionalidade na edição. E nós temos um histórico no Brasil com edição que é um caso sério.
Existe algum sistema penal que podemos usar como referência para o Brasil? A Argentina, por exemplo, a maioridade penal é de 16 anos, mas o sistema é menos punitivo…
Não. Cada país, dentro da sua sociedade, da cultura punitiva da sua sociedade, toma sua decisão. E muitos países adotam os 18 anos. Mas a imprensa daqui do Brasil, toda vez que tem um garoto de 16 anos sendo acometido pela lei, acha que é muito bom, acha que é uma prova de civilização. Isso, na verdade, é prova de barbárie.
Existe um crime mais usual entre os jovens menores de 18 anos?
Na criminologia não existe etiologia [estudo das causas]. Uma vez uma orientanda fez uma pesquisa com as mulheres presas por conta do tráfico de drogas. No questionário, a menina perguntava ‘o que você mais se lembra dos tempos em que traficava?’, e uma das respostas foi: ‘o que eu me lembro é que meus filhos comiam iogurte todos os dias’. A resposta foi claramente uma atividade de ganho econômico, uma estratégia de sobrevivência. E o que podemos ver mais uma vez é o fracasso do proibicionismo, diante de realidades tão complexas.
O sr. é a favor da legalização das drogas?
Eu sou completamente a favor da legalização de todas as drogas. Já vimos que esse controle atual é um fracasso. A lei das drogas é um reflexo disso: a pena mínima era um ano, passou para três anos, depois para cinco, e agora um deputado quer que sejam oito anos. Mas o que vemos é que os problemas foram só aumentando. Até o general de direita da Guatemala e o presidente da Colômbia já entenderam que não é este o caminho, mas aqui no Brasil ainda não conseguimos ter essa compreensão. Eu tenho uma admiração pelas políticas sociais do PT, apesar de não crer que a distribuição de renda arrecadada seja a coisa mais motivadora e tenho medo que a nova classe C tenha ficado fascista, mas é admirável que 20 milhões de pessoas comam todos os dias. Por outro lado, a política criminal é nota zero. Parece que eles acham que não é possível conceber uma política criminal comprometida com as classes populares. As pessoas moralizam as questões, têm medo de discutir. Por isso o Brizola foi tão criticado quando bancou isso.
(entrevista so Jornal da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, julho/2013)
Por: Fernando Brito
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