Quando faltam 48 horas para o reinício do julgamento do mensalão,
interrompido de forma abrupta por Joaquim Barbosa na quinta-feira da
semana passada, é bom ir à substância das coisas.
Ao interromper o julgamento, Joaquim impediu o ministro Ricardo
Lewandovski de expor seu ponto de vista sobre um recurso do deputado
Bispo Rodrigues.
Condenado pela nova lei anticorrupção, Rodrigues quer que sua pena seja
definida pela legislação em vigor no momento em que os fatos ocorreram, e
não pela legislação posterior, que agravou as condenações. É um recurso
simples, com fundamento em regras tradicionais do Direito, e tem muito
fundamento lógico.
O mesmo princípio aplica-se a qualquer cidadão obrigado a prestar contas
a Justiça, mesmo que envolva delitos mais leves, como o do estudante
apanhado com um cigarro de maconha na mochila.
É claro que o tribunal precisa realizar este debate. A fase atual, de
recursos declaratórios, destina-se exatamente a sanar dúvidas e
contradições dos acórdãos.
E se alguém não enxerga uma contradição tão elementar como condenar uma
pessoa com base numa lei que não estava em vigor no dia em que o crime
foi cometido deveria voltar ao primeiro ano de Direito, certo?
O problema é que todos sabem do que estamos falando. A truculência de
Joaquim, expressa uma questão de natureza muito mais grave, que vai além
das boas maneiras e da cortesia.
Coloca em risco o direito dos condenados a apresentar recursos, o que,
afinal, é um direito assegurado pela legislação. É disso que estamos
falando.
Nenhum ministro, nem o presidente do STF, pode tratar os direitos dos réus como aquilo que ele gostaria que fossem.
A Constituição não é aquilo que o Supremo diz que ela é mas aquilo que o
povo, através de seus representantes eleitos, diz que é.
Tem gente que diz que Joaquim e Lewandovski tiveram um “atrito” na
quinta-feira. Que vergonha. O presidente do STF tomou a palavra de um
ministro que tinha todo direito de exercê-la. Lewandovski reagiu com a
dignidade que a situação impunha. Que “atrito” é este?
Outro truque é falar que há uma “divergência” de opinião entre os
ministros. É inacreditável. Os fatos ocorreram numa data e a nova lei
estava em vigor em outra. Cadê a "divergência"?
Procurando livrar a cara de Joaquim, o último recurso de nossos
conservadores é sugerir que ele peça desculpas a Lewandovski pelas
palavras grosseiras que empregou na quinta-feira. Que bonito.
Compreende-se a origem de uma sugestão tão cavalheiresca. Gratificados
pelos serviços políticos prestados por Joaquim Barbosa no julgamento,
nossos conservadores querem lhe dar uma saída honrosa, inofensiva e
fútil.
Topam fingir que assistimos a um incidente semelhante a um esbarrão numa
escada no metrô, por exemplo. Ou à milésima reação “intempestiva”,
“descontrolada”, do presidente do Supremo. Desculpas, desculpas. É, a
palavra é mesmo apropriada.
Nossos cavalheiros dizem que estão em desacordo com a forma, um pouco
grosseira demais, digamos assim. Querem esconder que apoiam o conteúdo. O
problema, porém, é de conteúdo.
Recusar o debate sobre embargos declaratórios implica em atropelar
direitos assegurados em lei. Não é um problema de boas maneiras. Nem de
psicologia. Nem de saber se Joaquim força uma crise diante das câmaras
de TV para renunciar ao cargo e lançar-se candidato a presidência. Vai
ser escandaloso se isso acontecer, é claro. Mas é uma especulação.
É um problema de natureza política.
O erro consiste em bloquear um debate sobre erros e contradições dos
acórdãos. Joaquim intimida dissidentes e discordantes. Interrompe o
julgamento quando lhe convém.
E isso não é aceitável.
Este é o direito ameaçado por suas atitudes. Não é um problema pessoal entre dois ministros.
Depois de cobrir o julgamento como um espetáculo, sem o mais leve
espírito crítico tão presente em seus editoriais, nossos meios de
comunicação estão unidos a Joaquim Barbosa no esforço para acabar o show
de qualquer maneira.
Com graus variados de sutileza, a postura de muitos observadores é de chantagem em torno de um novo fantasma, o 7 de setembro.
Perguntam: como “a rua,” “o monstro”, vai reagir, se até lá ninguém tiver sido preso?
Em vez de assumir seu papel social com dignidade e explicar por que nem
sempre a Justiça anda nos prazos de uma novela de TV ou no CSI, pretende-se fazer o contrário: subordinar o mundo e os direitos das pessoas às regras da sociedade de espetáculo.
Estas regras, como se sabe, consistem em mostrar que tudo muda para que nada mude.
Depois de seguir o mandamento de Rudolf Hearst, inescrupuloso magnata da
imprensa norte-americana, para quem ninguém perderia dinheiro
investindo na “pouca inteligência do leitor,” usa-se a “pouca
inteligência do leitor” para justificar uma política sem escrúpulos.
E aí chegamos ao verdadeiro problema.
O espetáculo não foi tão bom como nossos críticos querem nos fazer acreditar.
A contradição absurda entre datas, que chegou a consumir longos debates
durante o julgamento, o que torna o tema ainda mais espantoso, é o
primeiro ponto que precisa ser colocado em pauta. E é muito maior do que
você pode imaginar.
Os grandes troféus do julgamento, José Dirceu, José Genoíno e Delubio
Soares também foram prejudicados por essa falha “técnica”, digamos
assim. Olhe, então, o tamanho do estrago que esse debate pode produzir –
só no capitulo “datas.”
Será por isso que querem acabar logo com o show?
Sem dúvida. Há muito mais a ser debatido. E aí não vamos imbecilizar o
diálogo. É claro que os condenados querem expor seu ponto de vista e
provar suas teses, aproveitando cada brecha, cada pequeno respiro, que a
legislação oferece. Isso não quer dizer que eles não tenham argumentos
reais que devam ser considerados.
Essa atitude não transforma seu esforço em malandragem – embora a
cobertura tendenciosa, facciosa, dos meios de comunicação, como definiu
mestre Janio de Freitas, destine-se a sugerir que toda visão discordante
contenha elementos de desonestidade.
Não é Fla x Flu. É Flu x Flu. Ou Fla x Fla.
Os condenados precisam de tempo, que não tiveram na primeira fase do julgamento.
A leitura de muitas alegações sugere que não tivemos um julgamento de
verdade em 2012. Não se considerou os argumentos da outra parte, nem se
deu a atenção devida a contradições entre as acusações e as provas.
Estamos falando do direito de pessoas, não de personagens de um programa
de TV. Estamos falando da liberdade individual – um bem que não pode
ser tratado com pressa nem com desprezo, vamos combinar.
Para quem está impaciente, fazendo a chantagem da rua, do monstro, não
custa lembrar que não se teve a mesma impaciência com o propinoduto
tucano, que começou a ser denunciado em 1998 e teve seu primeiro
indiciamento há apenas quinze dias...Isso mesmo: há quinze dias.
Mesmo assim, já tem gente reclamando contra o uso da teoria do domínio do fato contra o PSDB.
Curioso, não?
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