A simples realização do debate sobre a criação da Rede demonstra a estranheza dos tempos em que vivemos
Em menos de um mês, o País assiste à repetição de um mesmo espetáculo.
Enfrentando pela segunda vez uma legislação desfavorável, forças
políticas identificadas genericamente como adversárias do governo
Dilma-Lula pressionam a Justiça para garantir que a lei seja ignorada.
O primeiro caso ocorreu quando o STF foi debater o direito aos embargos
infringentes na ação penal 470. Para pressionar o ministro Celso de
Mello a votar contra a legislação que assegura os embargos infringentes
conforme decisão do Congresso, de 1998, chegou-se a criar um ambiente de
constrangimento e ameaça.
A tese era política: mesmo que os embargos tivessem amparo na lei,
dizia-se que sua aceitação poderia comprometer a imagem do STF, criar
uma sensação de impunidade no País e assim por diante.
O outro caso ocorre agora. Marina Silva, a grande esperança da oposição
de garantir um segundo turno na eleição presidencial, corre o risco de
ficar sem seu partido para disputar a campanha.
Nada impediria Marina de concorrer por outra legenda. Mas ela faz
questão de disputar pelo seu partido e é isso que o TSE irá discutir
hoje.
Quando se viu em dificuldade internas em seu mais recente partido
político, o PV, ao qual filiou-se ao sair do PT e pelo qual concorreu à
presidência em 2010, Marina tomou uma decisão dramática. Resolveu que em
vez de pedir ingresso numa das dezenas de legendas já existentes no
país, deveria fundar uma agremiação, nova em folha, para concorrer à
presidência da República. Teria apenas cinco meses para cumprir a tarefa
de constituir um partido de estatura nacional, com projeto político e
programa de governo, com milhares de questões de política e organização
para resolver em prazo tão curto, mas foi em frente mesmo assim. Reuniu
amigos e aliados em Brasília, percorreu o País em vários eventos, mas,
como era previsível, não conseguiu terminar o serviço no momento
necessário. Resultado: conforme avaliação do TSE, o partido que Marina
quer fundar não tem condições legais para participar da campanha de
2014.
Nessa situação, a pressão dos aliados de Marina sobre o TSE não consiste
em apontar qualquer erro ou incongruência no processo sobre a Rede de
Sustentabilidade. O movimento é aberto: consiste em sugerir aos
ministros que fechem os olhos para as falhas encontradas para assim
garantir o registro do partido.
Voltando ao debate sobre os embargos. Quando a decisão envolvia retirar
direitos de determinados réus, argumentava-se que era preciso ser
rigoroso, implacável, e até ignorar direitos e garantias. Quando a
decisão diz respeito a uma possível aliada, a conversa muda. Pede-se
tolerância absoluta, boa vontade, e assim por diante.
O argumento é que uma decisão desfavorável a Marina poderia prejudicar a
democracia brasileira. Tenta-se convencer os brasileiros de que, sem a
Rede, diz-se, Marina estará fora da campanha presidencial, deixando seus
eleitores – foram 20 milhões – órfãos da candidata de sua preferência.
Vamos lembrar mais uma vez: nenhum obstáculo legal impediria nem
impedirá Marina de participar da eleição presidencial. Nada. Caso seu
partido seja rejeitado, ela só necessitaria aceitar - dentro do prazo
legal, é claro - convite para ingressar numa das várias legendas que já
manifestaram interesse em contar com sua presença e seus votos em 2014.
Ela só não entrará na disputa presidencial se não quiser ou não tiver
interesse, portanto.
E se você quer saber meu palpite, eu antecipo: acho que ela vai levar
essa disputa no TSE até o fim porque se trata de um jogo no qual só pode
ganhar. Vai ficar nos holofotes, dar entrevistas sobre o assunto, dizer
que está sendo perseguida, exibir declarações indignadas de
celebridades que lhe dão apoio.
Se o TSE curvar-se, leva o partido para casa. Se o TSE rejeitar a Rede,
Marina ingressa em outra legenda e sai em campanha denunciando que
apesar de tudo derrotou a perseguição dos adversários.
Só há um problema, na verdade. Uma filiação aos 44 minutos do segundo
tempo, improvisada, em ambiente de fim de feira, não faria bem à imagem
de seriedade que Marina gosta de projetar sobre si mesma.
Embora tenha tido dois mandatos de senadora e tenha passado cinco anos
como ministra no governo Lula, boa parte de seu charme consiste na
mitologia do não-político, na construção de uma personalidade que se
coloca distante daquele mundo que se costuma descrever como bagunça
geral, mas é o modo real de funcionamento da democracia em nosso País,
com suas grandes qualidades e inúmeros defeitos.
O problema, na verdade, não é garantir o direito indiscutível de Marina disputar a presidência da República. O debate é outro.
Para Marina, consiste em preservar sua imagem – mercadoria estranha aos objetivos da legislação eleitoral.
Para os brasileiros, consiste em saber se a lei deve valer para todos,
sem distinção de quem pode ser prejudicado e de quem pode beneficiar-se a
cada momento.
A simples realização deste debate em demonstra a estranheza dos tempos em que vivemos, concorda?
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