Na década de 1960, quando o embaixador norte-americano Lincoln Gordon
dava seguidas e constrangedoras demonstrações de poder junto aos
generais que tentavam dar a impressão de mandar no Brasil após o golpe
militar, o jornalista Paulo Francis cunhou uma frase que ficou famosa:
“chega de intermediários. Lincoln Gordon para presidente.”
Sessenta anos se passaram e o Brasil mudou bastante desde então. Morto
em 1997, o próprio Paulo Francis tornou-se um barítono da direita
brasileira, servindo de mestre para um conservadorismo que não conseguia
renovar-se por si próprio.
O país se democratizou, os brasileiros fizeram uma constituição
democrática e, dentro de poucas semanas, irão votar para presidente pela
sétima vez consecutiva, em ambiente de paz e plena liberdade de
expressão — isso nunca aconteceu na república brasileira, em período
algum.
Com um histórico de desigualdade e exclusão, na última década o país
conseguiu avanços memoráveis na luta contra a pobreza, por uma melhor
distribuição de renda. É inegável.
Mas nem tudo se modificou, como mostra Fernando Rodrigues, na Folha de hoje.
A entrevista de Maria Alice Setúbal, a herdeira do Itaú, que, manda a
tradição aristocrática brasileira, prefere ser tratada em público como
Neca, apelido familiar, é um assombro.
Educadora, por profissão, Neca é, também, bilionária por herança. É uma
conversa sem rodeios nem inibições. Desde a confirmação da candidatura
Marina, a herdeira do Itaú foi confirmada como coordenadora do programa
de governo. Lembra de Antonio Palocci, que teve um papel essencial na
estruturação do governo Lula, depois da vitória de 2002, inclusive com a
Carta ao Povo Brasileiro? Seu lugar no organograma era o mesmo. Imagine
o poder de Neca.
Maria Alice fala do ponto mais importante: autonomia do Banco Central,
medida que, nós sabemos, concentra o ponto fundamental da campanha de
2014 — permitir ao sistema financeiro recuperar o controle absoluto da
política econômica, definindo a taxa de juros conforme análises e
projeções de instituições privadas que atuam no mercado.
Nós sabemos que, hoje, o governo Dilma procura manter a inflação sob
controle e tem obtido vitórias importantes — há quatro meses os preços
estão em tendência de queda e as projeções indicam um movimento
semelhante no próximo levantamento. Apesar disso, o governo não abre mão
de proteger os salários e de tomar toda medida a seu alcance para
manter o emprego
,
em seu mais baixo nível da história. Isso só é possível porque, mesmo
sem dar ordens ao Banco Central, a presidência da República tem o poder
de indicar e demitir seu presidente.

A autonomia do BC é a senha para se mudar isso. Em vez de deixar a
política econômica em mãos de tecnocratas que respondem a uma autoridade
eleita, o que se quer é dar independência aos diretores do banco, que
passam a ter mandato e assim por diante. Independência de quem? Das
autoridades que de uma forma ou outra expressam a soberania popular.
Eduardo Campos já havia se declarado a favor da autonomia do BC, postura
que causou espanto nos aliados que recordavam a herança do avô Miguel
Arraes. Marina disse na época que não era favorável. Parecia resistir.
“Enfim”, concordou, explica Maria Alice, esclarecendo que se quer
definir o assunto em lei.
Criado pela ditadura militar, o Banco Central brasileiro guarda uma
peculiaridade em comparação com originais estrangeiros. O Federal
Reserve Americano, por exemplo, tem o dever de defender a moeda do país —
e o emprego
dos cidadãos. Essa missão com duas finalidades está lá, em mármore, na
porta da instituição. No Brasil, não há referência ao emprego. Outros
tempos, outros governos. Entendeu, né?

A coordenadora Maria Alice não é uma eleitora qualquer, cujo voto
representará 1/100 milhões na eleição. O Itaú é um gigante com US$ 468
bilhões de ativos em 2013. É um número respeitável por qualquer padrão,
inclusive internacional. Numa lista com os 15 maiores bancos dos Estados
Unidos, o Itaú fica a frente de nove em ativos. Mas não é só.
Se você comparar a rentabilidade sobre o patrimônio, o banco da
coordenadora da campanha de Marina supera mesmo os maiores bancos da
maior economia do planeta. Diz a consultoria Econométrica que em 2013, o
Itaú teve um rendimento da ordem de 16,70% sobre o patrimônio, algo
perto de US$ 70 bilhões, só no ano.
Só para você ter uma ideia, o US Bancorp, mais lucrativo banco dos
Estados Unidos, teve uma rentabilidade de 15,48%. Os maiores bancos dos
EUA estão longe de exibir um desempenho comparável ao Itaú, no entanto. O
Morgan, com um patrimônio mais de quatro vezes maior do que o Itaú,
teve um rendimento 50% menor, em termos relativos. O rendimento do Citi,
três vezes maior, teve um rendimento de equivalente a um quatro daquele
auferido pelo Itaú, em termos proporcionais.
O Itaú não é o único banco brasileiro nessa posição. Bradesco e Banco do
Brasil sobrevivem em ambiente muito parecido. A diferença é que os
concorrentes não colocaram uma herdeira no comando de uma campanha
presidencial, o que dá um grau de proximidade particularmente perigosa.
O Banco Central que a coordenadora Maria Alice quer autônomo já define,
hoje, a taxa básica de juros e isso explica a força do setor financeiro
no país. Caso essa situação seja colocada em lei, a situação ficará
ainda pior.
Protegidos por uma taxa de juros que já foi muito mais alta no governo
de Fernando Henrique Cardoso, mas segue uma das maiores do mundo, os
bancos crescem e engordam recebendo rendimentos pelos títulos do
governo. Com os lucros do rentismo, os bancos não tem necessidade de
emprestar ao empresário nem ao consumidor, atividade que está na razão
de sua existência, no mundo inteiro. A taxa média anual de juros nos
empréstimos bancários, em 2013, foi de 27,3% no Brasil. Uma barbaridade.
Só em Madagascar (60) e Malawi (46%) esse ganho foi maior. No Canadá
ficou em 3%. Na China, em 6%. Na Italia, em 5,1% e na Suíça, 2,6%. Nos
Estados Unidos, ficou em 3,2%, ou oito vezes menor do que no Brasil. Na
Inglaterra, ficou em 0,50%, mais quarenta vezes menor.
Dá para entender, assim, a desenvoltura de Maria Alice Setúbal.
Pode parecer arrogância, mas não é isso. É pura expressão de uma
realidade política profunda. Alguém reclamava na França do Século XVII
quando o Rei Sol dizia que “o Estado sou eu?” Era natural, vamos
combinar.
Sem demonstrar inibições maiores, a herdeira do Itaú faz críticas
diretas ao estilo de Dilma Rousseff. Avançando num argumento que reúne
varias camadas de preconceito, nem sempre invisíveis, falou que a
presidente exerce uma “liderança masculina.” Vinte e quatro horas depois
que a candidatura de Marina provocou a saída de dirigentes históricos
do PSB da campanha, ela achou conveniente definir Dilma como
“desagregadora”.
Marina trouxe uma representante do 1% do PIB mundial para o comando de sua campanha.
É aquela turma que atua por cima dos estados nacionais e tem ligações
frágeis com as respectivas populações porque seu horizonte é o mercado
global. Como se aprende com o Premio Nobel Joseph Stiglitz, são esses
interesses que impedem uma recuperação firme após a crise de 2009. O
povo foi a rua em várias versões de ocupação e nada acontece. O 1% não
quer e não deixa.
As grandes instituições financeiras seguem dando as cartas do jogo,
mesmo depois de suprimir 60 milhões de empregos e destruir o futuro de
várias gerações de trabalhadores.
O que a turma de 1% quer é eliminar o Estado de Bem-Estar Social aonde
existe, ou impedir seu crescimento, ande está para ser construído. Isso
porque ele funciona como uma garantia contra a reconcentração de renda e
preservação dos direitos democráticos, que nem sempre comovem os
mercados. Em alguns países do mundo, a força destruidora da crise não
fez seu trabalho. Um deles é o Brasil, onde o governo de Luiz Inácio
Lula da Silva se recusou a tomar medidas que criariam uma Grécia infeliz
e sem futuro na América do Sul. Vem daí a campanha de ódio contra seu
governo e contra sua sucessora.
É isso e apenas isso.
Do Blog CONTEXTO LIVRE.
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