sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Veja transforma em ‘super-herói nacional’ assassinos de Amarildo


Todo policial do Bope sai do quartel com seu saquinho plástico. Serve para pôr na cabeça do marginal, apertando bem na base, que fica amarrada no pescoço. O sujeito sufoca, vomita e desmaia. É meio nojento, mas eficaz. Do livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel

Na terça-feira passada, 1º de outubro, a Polícia Civil do RJ entregou ao Ministério Público inquérito pedindo o indiciamento de dez policiais militares que atuavam na UPP da Rocinha.

Os policiais são acusados de terem sequestrado, torturado, assassinado e ocultado o cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, cujo corpo continua desaparecido.

Detalhe: dentre os dez indiciados, está o ex-comandante da UPP, major Edson.
Trata-se de um oficial formado pelo Bope.

Não há como deixar de lembrar do filme Tropa de Elite.

Isso porque, segundo a polícia, moradores relataram durante as investigações ja terem levado choques elétricos e já terem sofrido asfixia com sacos plásticos por policiais em busca de informações sobre traficantes e armamento.

Ora, não são exatamente essas práticas que o filme retratou?

Mas o que mais chama a atenção é o fato de que, enquanto a tortura deita e rola no filme e na vida real (pelo menos para uma parte da população), a percepção de muitos que assistiram o filme é positiva em relação ao tipo de policial que o filme retrata.

É sintomática a capa da revista Veja, de 10 de novembro de 2010. Sob a imagem do Capitão Nascimento, a chamada anuncia: “O primeiro super-herói brasileiro. Ele é incorruptível, implacável com bandidos e espanca políticos degenerados”. E promete: “Que recado estão dando os milhões de brasileiros que viram e aplaudiram o filme?”.

Não tratarei da reportagem. O leitor do Viomundo não merece tal desprazer.

É inegável. De fato, “milhões viram e aplaudiram o filme”. Mas será que esses milhões não viram que os “super-heróis” sequestram, torturam e matam? Não viram as cenas de asfixia com saco plástico? Não viram, ao final de Tropa de Elite 2, um policial prestes a matar “com a 12″ um traficante já rendido? Claro que viram. E, no entanto, aplaudiram.

Uma parte talvez não se dê conta de que o filme retrata a vida real. Outra parte talvez saiba disso, e não se importa. E há aqueles que sabem e, justamente por isso, aplaudem. Certamente Veja não está entre os primeiros. Duvido que esteja entre os segundos.

O mais inquietante na esdrúxula capa é saber que os crimes praticados no filme por policiais do Bope convivem com a imagem de que estes mesmos policiais seriam “incorruptíveis”, quando na verdade não há corrupção maior do que sequestrar, torturar e assassinar.

Claro está, e não é novidade, que a revista Veja tem um critério não só seletivo mas também bastante sui generis de corrupção.

O ponto é que, ao promover a imagem do policial “incorruptível”, do “super-herói”, Veja ignora solenemente as práticas de tortura e assassinato que o filme retrata, e que ocorrem de maneira recorrente e sistemática na vida real para milhões de brasileiros que vivem em periferias urbanas.

Contudo, o problema maior não está em ignorá-los, mas em transformá-los no seu exato oposto. Na abordagem de Veja, tortura e assassinato praticados por policiais passaram de crimes a algo normal, que deve ser encarado com naturalidade.

Ao cabo, é como se a revista tivesse dito: exatamente porque sequestra, tortura e mata, ou seja, sendo “implacável com bandidos”, é que o capitão Nascimento é o nosso herói.

Ocorre que isso não pode ser dito, pelo menos não de maneira tão explícita e aberta. A naturalização dos crimes praticados pelos policiais do Bope no filme é feita, na abordagem da revista, exatamente quando Veja silencia sobre eles. Passam despercebido.

Temos aqui uma prática recorrente do tipo de direita que se formou no Brasil. O fascismo é naturalizado na medida em que é silenciado, na medida em que passa despercebido, na medida em que é incorporado à paisagem. O fascismo não é explicitado, mas silenciado. A revista Veja não precisa defender abertamente a tortura praticada por policiais. Ela o faz veladamente, quando silencia.

Daí porque a crítica à direita brasileira envolve voltar-se para estes silêncios e fazê-los falar, obrigá-los a falar, exigir que falem – o que verdadeiramente pensam, o que verdadeiramente pressupõem, e que é estrategicamente silenciado.

Que fique claro: ao retratar um torturador e assassino como o “super-herói nacional”, Veja transforma em “super-herói nacional” exatamente os assassinos de Amarildo (e de tantos outros).

Em tempo: reportagem publicada pela Folha de S. Paulo mostra que o número de desaparecidos em 18 regiões onde há UPPs aumentou 56% entre 2008 e 2011

Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.
 
Do Blog COM TEXTO LIVRE.

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