Todo policial do Bope sai do quartel com seu saquinho plástico.
Serve para pôr na cabeça do marginal, apertando bem na base, que fica
amarrada no pescoço. O sujeito sufoca, vomita e desmaia. É meio
nojento, mas eficaz. Do livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel
Na terça-feira passada, 1º de outubro, a Polícia Civil do RJ entregou
ao Ministério Público inquérito pedindo o indiciamento de dez policiais
militares que atuavam na UPP da Rocinha.
Os policiais são acusados de terem sequestrado, torturado, assassinado e
ocultado o cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, cujo
corpo continua desaparecido.
Detalhe: dentre os dez indiciados, está o ex-comandante da UPP, major Edson.
Trata-se de um oficial formado pelo Bope.
Trata-se de um oficial formado pelo Bope.
Não há como deixar de lembrar do filme Tropa de Elite.
Isso porque, segundo a polícia, moradores relataram durante as
investigações ja terem levado choques elétricos e já terem sofrido
asfixia com sacos plásticos por policiais em busca de informações sobre
traficantes e armamento.
Ora, não são exatamente essas práticas que o filme retratou?
Mas o que mais chama a atenção é o fato de que, enquanto a tortura
deita e rola no filme e na vida real (pelo menos para uma parte da
população), a percepção de muitos que assistiram o filme é positiva em
relação ao tipo de policial que o filme retrata.
É sintomática a capa da revista Veja, de 10 de novembro de 2010.
Sob a imagem do Capitão Nascimento, a chamada anuncia: “O primeiro
super-herói brasileiro. Ele é incorruptível, implacável com bandidos e
espanca políticos degenerados”. E promete: “Que recado estão dando os
milhões de brasileiros que viram e aplaudiram o filme?”.
Não tratarei da reportagem. O leitor do Viomundo não merece tal desprazer.
É inegável. De fato, “milhões viram e aplaudiram o filme”. Mas será que
esses milhões não viram que os “super-heróis” sequestram, torturam e
matam? Não viram as cenas de asfixia com saco plástico? Não viram, ao
final de Tropa de Elite 2, um policial prestes a matar “com a 12″ um traficante já rendido? Claro que viram. E, no entanto, aplaudiram.
Uma parte talvez não se dê conta de que o filme retrata a vida real.
Outra parte talvez saiba disso, e não se importa. E há aqueles que sabem
e, justamente por isso, aplaudem. Certamente Veja não está entre os primeiros. Duvido que esteja entre os segundos.
O mais inquietante na esdrúxula capa é saber que os crimes praticados
no filme por policiais do Bope convivem com a imagem de que estes
mesmos policiais seriam “incorruptíveis”, quando na verdade não há
corrupção maior do que sequestrar, torturar e assassinar.
Claro está, e não é novidade, que a revista Veja tem um critério não só seletivo mas também bastante sui generis de corrupção.
O ponto é que, ao promover a imagem do policial “incorruptível”, do “super-herói”, Veja
ignora solenemente as práticas de tortura e assassinato que o filme
retrata, e que ocorrem de maneira recorrente e sistemática na vida real
para milhões de brasileiros que vivem em periferias urbanas.
Contudo, o problema maior não está em ignorá-los, mas em transformá-los no seu exato oposto. Na abordagem de Veja, tortura e assassinato praticados por policiais passaram de crimes a algo normal, que deve ser encarado com naturalidade.
Ao cabo, é como se a revista tivesse dito: exatamente porque sequestra,
tortura e mata, ou seja, sendo “implacável com bandidos”, é que o
capitão Nascimento é o nosso herói.
Ocorre que isso não pode ser dito, pelo menos não de maneira tão
explícita e aberta. A naturalização dos crimes praticados pelos
policiais do Bope no filme é feita, na abordagem da revista, exatamente
quando Veja silencia sobre eles. Passam despercebido.
Temos aqui uma prática recorrente do tipo de direita que se formou no
Brasil. O fascismo é naturalizado na medida em que é silenciado, na
medida em que passa despercebido, na medida em que é incorporado à
paisagem. O fascismo não é explicitado, mas silenciado. A revista Veja não precisa defender abertamente a tortura praticada por policiais. Ela o faz veladamente, quando silencia.
Daí porque a crítica à direita brasileira envolve voltar-se para estes
silêncios e fazê-los falar, obrigá-los a falar, exigir que falem – o que
verdadeiramente pensam, o que verdadeiramente pressupõem, e que é
estrategicamente silenciado.
Que fique claro: ao retratar um torturador e assassino como o “super-herói nacional”, Veja transforma em “super-herói nacional” exatamente os assassinos de Amarildo (e de tantos outros).
Em tempo: reportagem publicada pela Folha de S. Paulo mostra que o número de desaparecidos em 18 regiões onde há UPPs aumentou 56% entre 2008 e 2011.
Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.
Do Blog COM TEXTO LIVRE.
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