A entrada de Fernando Henrique Cardoso no debate sobre a ação penal 470
apenas confirma com pompa e circunstância aquilo que sempre se soube.
O julgamento de réus que integravam o governo Lula, agora em sua etapa
final, é um processo politizado, que mobiliza interesses que nada têm a
ver com o distanciamento e frieza que se espera numa decisão com base
nos fundamentos do Direito.
No artigo “A Responsabilidade do STF”, FHC entrou no debate. O ex-presidente resolveu jogar para a multidão.
Num momento em que se acumulam vários sinais de que a falta de
consistência de determinadas acusações pode levar a uma diminuição das
penas de 12 réus, o ex-presidente faz um chamado à velha ordem.
Numa postura incompreensível do ponto de vista da democracia e dos
direitos individuais, FHC critica o STF pela aceitação de um benefício
legal, os embargos infringentes, que seu governo tentou sem sucesso
extinguir em 1998. É uma atitude arbitrária.
Implica em sustentar que um direito confirmado pelo Congresso brasileiro
em 1998, tão líquido e certo como qualquer outro, inclusive uma simples
carta de motorista após exames de praxe, deve ser sonegado a
determinadas pessoas, mesmo que não exista nenhuma justificativa legal
para isso.
O receio de Fernando Henrique é que alguns condenados sejam capazes,
agora, de convencer uma maioria de juízes de que receberam penas
injustas e, dessa forma, modificar seu regime prisional. Como aquele
cidadão zeloso que não foi capaz de impedir o filho de fumar, FHC agora
quer impedi-lo de tragar.
Ex-presidente da República, personagem presente nas lutas contra o
regime militar, Fernando Henrique sabe qual é o debate quando os
direitos de cada indivíduo se encontram em discussão. O ex-presidente
admite, lucidamente, que há temas que é complicado resolver em estádios
de futebol.
Imagine se o aumento de salário mínimo fosse resolvido em estádios de
futebol. Ou se o casamento entre homossexuais fosse submetido a
plebiscito. Ou se a pena de morte fosse definida pela internet. Falando
sobre a concessão dos embargos, o ex-presidente admite: a concessão dos
embargos pode “parecer razoável às pessoas mais afeitas às garantias e
direitos individuais e menos movidas por sentimentos de vingança”.
Diante da ação penal 470, contudo, sua prioridade é outra, Trata-se de
“evitar a percepção popular de que tudo não passou de um artifício para
livrar os poderosos da cadeia.” Essa argumentação pode ser reproduzida
de várias formas, para sustentar vários raciocínios – FHC não desperdiça
nenhuma delas.
Num trecho, explica que não quer que a população alimente “sentimento de
dúvida, quando não de revolta, com os resultados ainda incertos do
julgamento. Afinal, para a maioria dos brasileiros, trata-se de uma das
poucas vezes em que habitantes do ‘andar de cima ‘ como se os qualifica
no falar atual, estão no pelourinho.” Em outro, FHC fala da “sensação de
impunidade”.
Falando sobre a hipótese – legítima – de que determinados réus obtenham
uma redução das penas, Fernando Henrique evita debater se a
possibilidade tem algum respaldo jurídico. Ressalta seu efeito sobre a
visão da população:
“Se essa hipótese vier a se confirmar, estará consagrada a percepção de
que “os de cima “são imunes e só os ‘de baixo ‘vão para a cadeia.”
Sujeito oculto num guarda-chuva
Como se não estivesse exprimindo uma opinião pessoal, que traduz uma
vontade política de uma parte interessada, de garantir que adversários
políticos sejam colocados na cadeia, mesmo que seus direitos legais
permitam outra solução, Fernando Henrique recorre a um guarda-chuva. A
utilização de expressões “para o povo”, “para a maioria da população,”
“percepção popular”, torna possível esconder o sujeito da ação. Diante
de expressões como “a maioria dos brasileiros,” fica-se com a impressão
de que o ex-presidente não fala pela própria voz, mas faz sociologia
pura. É apenas o portador da opinião do homem das ruas, aquele autor que
traduz o pensamento da multidão.
Lembra que o julgamento dos embargos irá levar meses e diz “para o povo
nada disso é compreensível ou justificável. Por que demorar tanto?”
É difícil deixar de enxergar, nesta argumentação, uma postura que
Octavio Ianni, antigo colega de Fernando Henrique na Universidade de S.
Paulo, definiria como populista. Não gosto do conceito, mas ele ajuda a
entender o que quero dizer.
Decalques sociológicos
Nós sabemos que, EM GERAL, as pessoas de posses tem maiores facilidades
para escapar da Justiça. É assim em sociedades divididas em classes, em
especial naquelas onde a desigualdade é um traço profundo e perpétuo.
Por exemplo: os diretores do antigo Banco Nacional, do qual uma antiga
nora de FHC era sócia, e mesmo assim sofreu intervenção do Banco Central
durante seu governo, até agora não começaram a cumprir penas entre 17 e
12 anos de prisão a que foram condenados por formação de quadrilha,
gestão fraudulenta e outras práticas, num processo que teve início em
1995, ou seja, dezoito anos atrás.
Mas, quando se trata de processos políticos, a situação costuma ser
muito diferente. O decalque sociológico pode ficar subordinado a outras
prioridades. Aliado de João Goulart, um dos homens mais ricos do Brasil
de 1960, Mário Wallace Simonsen, foi perseguido de todas as formas pelo
regime militar. Perdeu inclusive a TV Excelsior, a campeã de audiência,
na época. José Ermírio de Moraes, pai de Antonio Ermírio, empresário que
seria um dos principais patrocinadores do PSDB, foi cassado e
perseguido, também. O deputado e empresário Rubens Paiva, aluno da
Universidade Mackenzie, com estatura para disputar obras públicas, foi
torturado e executado como tantos estudantes e trabalhadores que
participaram da resistência a ditadura. Apesar do prestígio que possuía –
era amigo pessoal de Fernando Henrique, que duas décadas depois se
tornou presidente da Republica – a família de Rubens Paiva não
conseguiu, até agora, nenhuma notícia confiável sobre seu paradeiro. O
país se democratizou, o regime civil é uma realidade, os amigos chegaram
ao Palácio, e nada. Os restos daquele pai de família amoroso, membro da
“elite”, do “andar de cima”, continua desaparecido há 43 anos. A
condição social dos herdeiros de Rubens Paiva torna seu pleito menos
legítimo ou urgente do que o dos filhos do operário Virgílio Gomes da
Silva ou dos familiares do estudante Honestino Guimarães?
Numa observação incrivelmente comprometedora, FHC ignora o debate
jurídico sobre a qualidade das provas para apontar a atividade política
de determinados réus como agravante que deveria impedir a redução de
suas penas:
“Tal abrandamento implicará mudança de regime prisional apenas para membros do “núcleo político”.
Quando um ex-presidente da República convoca o elemento “povo” como
elemento retórico tão importante, parece difícil esconder uma verdade
cada vez mais evidente -- o enfraquecimento dos argumentos jurídicos da
acusação, fato já apontado de forma clara por um número cada vez maior
de advogados e juristas importantes.
A dura realidade: as provas são fracas
Oito anos depois da denúncia de Roberto Jefferson, que iria desvendar o
“maior escândalo de corrupção da história”, surge uma dura realidade. Se
é possível apontar falhas nas denuncias contra os publicitários Ramon
Hollerbach e Cristiano Paz e erros clamorosos no caso do diretor do
Banco do Brasil Henrique Pizzolato, para citar dois exemplos
particulares, as provas contra o “núcleo político” já não servem tão bem
assim para animar o espetáculo. Era ali que se encontravam os troféus
políticos da ação penal 470 e é ali que, juridicamente, se situa o
grande debate que envolve os embargos infringentes.
Com honestidade, ninguém seria capaz de alegar que os réus do mensalão
foram beneficiados por uma investigação indulgente nem por uma denúncia
generosa. Todos tiveram sua vida pessoal, profissional e financeira
devassada. Enfrentaram investigações paralelas, acumuladas mais tarde,
por parte do Ministério Público e da Polícia Federal. Nem todos tiveram
acesso a provas que poderiam beneficiá-los no momento adequado e sequer
foram informados de dados incluídos em inquéritos mantidos em segredo
durante o julgamento. Auditorias oficiais de valor inestimável foram
desprezadas. Várias conclusões da Polícia Federal, testemunhos idôneos,
inclusive de executivos de grandes empresas privadas, como a TV Globo,
foram ignorados. E apesar de tudo isso, de toda essa imensa vontade de
punir e castigar, verifica-se uma dura realidade: as provas contra o
“núcleo político” são fracas, tem pouca consistência. Geram dúvidas.
Justamente a acusação de formação de quadrilha foi rejeitada por quatro
ministros. Pode, teoricamente, ser rejeitada por mais dois na fase dos
embargos, o que pode ter duas consequências. A primeira, para os réus.
Eles continuarão condenados em outros crimes, mas poderão cumprir pena
fora do regime fechado. A outra é que a noção de que havia “uma
quadrilha” em atividade no governo será abandonada. É isso, do ponto de
vista político, que está em jogo.
Num debate civilizado, entre “pessoas mais afeitas às garantias e
direitos individuais e menos movidas por sentimentos de vingança”, como
escreveu FHC, a situação seria vista sem aflições nem sobressaltos. Quem
achou muito natural que, com outros ministros, o STF chegasse a
determinado resultado em dezembro de 2012, não deveria ver motivos para
contestar uma possível mudança nos próximos meses, em função dos
embargos. Deveria até reconhecer que, de seu ponto de vista, poderia ser
muito pior se os réus tivessem tido direito ao desmembramento do
processo, como aconteceu com os integrantes do mensalão PSDB-MG e também
do mensalão do DEM-DF. Neste caso, a chance de uma revisão completa
estaria assegurada por lei. Na ação penal 470, os embargos que tanto
incômodo causaram é um troco, quase uma esmola, uma moedinha, comparado
direito à dupla jurisdição, o que torna ainda mais constrangedora,
nefasta, e até vergonhosa, a campanha contra sua aceitação.
No entanto, num comportamento que politiza decisões que deveriam ser jurídicas, Fernando Henrique argumenta:
“Numa sociedade já tão descrente de seus líderes, com um sistema
político composto por mais de 30 partidos, num ambiente corroído pela
corrupção, com um governo com 40 ministérios, uma burocracia cada vez
mais lenta e penetrada por interesses partidários, não teria sido melhor
evitar mais uma postergação, reforçando a descrença na Justiça?”
Nem quero comentar a frase “numa sociedade já tão descrente de seus
líderes”. Por incrível que pareça, a afirmação se refere a “uma
sociedade” onde o governo é aprovado por mais de 50% da população, a
presidente conta com 38% de intenções de votos para disputar a reeleição
e seu principal aliado político, Luiz Inácio Lula da Silva, é o mais
popular presidente em 124 anos de história republicana. Vamos combinar
que é muito sujeito oculto numa frase menor que os 140 caracteres do
Twitter, certo?
Quem acompanhou o julgamento com atenção sabe que a Teoria do Domínio do
Fato teve seu momento de deslumbramento e glória passageira antes de
entrar num regime de esquecimento forçado. Parecia o instrumento
perfeito para assegurar a denúncia contra vários acusados, a começar por
José Dirceu, contra os quais sempre se soube que nunca havia prova
material, bastando ler o relatório da Polícia Federal para se descobrir
isso. A teoria seria útil mais tarde para condenar José Genoíno que, no
início, era acusado de ter assinado empréstimos fraudulentos em nome do
PT. Na medida em que se demonstrou que os empréstimos eram verdadeiros,
só era possível condenar Genoíno por seu papel em encontros de governo e
de partido que foram descritos como atividade do “núcleo político.”
Depois que um dos autores da teoria deixou claro que discordava de sua
apropriação pelo ministério público brasileiro, lembrando que ela se
aplicava para organizações militarizadas, com disciplina compulsória,
ela foi deixada de lado na argumentação final, sem que ninguém se
perguntasse por que. Fernando Henrique registra: “independentemente da
teoria do domínio do fato, formou-se na opinião pública a convicção de
que os mais notórios personagens, por menos rastros que tivessem
deixado, foram, sim, responsáveis ”.
Domínio do fato levaria ao PSDB
Ao longo do julgamento, ficou claro que, se a teoria do domínio do fato
fosse aplicada a todos os envolvidos, poderia trazer complicações
surpreendentes para figurões do governo Fernando Henrique que também se
envolveram no esquema. Não estou falando do mensalão PSDB-MG. Não.
Ficou demonstrado por uma auditoria no Banco do Brasil que Henrique
Pizzolato, condenado (absurdamente, a meu ver) a 12 anos de prisão como
responsável pelo desvio de R$ 73 milhões, não agiu nem poderia ter agido
sozinho. Suas decisões foram assinadas, rubricadas e partilhadas por
cinco diretores e gerentes do Banco do Brasil, com grau até maior de
responsabilidade. E ele estava subordinado a executivos que nada tinham a
ver com o PT nem com Delubio Soares, mas eram dirigentes indicados e
empossados no governo de Fernando Henrique Cardoso. Foram eles, como
homens de confiança do PSDB, que antes da posse de Lula assinaram o
primeiro contrato do Banco do Brasil com a DNA, a agencia de Marcos
Valério que servia tanto ao esquema financeiro do PT como ao similar
original do mensalão PSDB-MG, e que foi apenas prorrogado no início do
governo Lula. O responsável por todos pagamentos feitos a DNA – e que
eram “fraudulentos”, “criminosos” “simples desvio” segundo a denuncia --
chamava-se Leo Batista, foi escolhido no governo FHC e mantido no posto
depois da posse de Lula. Como se sabe, nenhum desses executivos foi
sequer indiciado na Ação Penal 470. Não digo que eram culpados. Eram
inocentes como Pizzolato. Mas se houve um crime, deveriam ser
considerados cúmplices, não é mesmo? Nem precisa falar em domínio do
fato para saber disso.
O mundo impessoal, mais uma vez
De novo, voltamos ao mundo impessoal, das responsabilidades ausentes, da
realidade automática. “Formou-se” na opinião pública a “convicção de
que os mais notórios, por menos rastros que deixaram, foram
responsáveis.“
Quem formou-se?
A “opinião pública” de um país não é um produto espontâneo de homens
livres, que discutem os assuntos do dia em ambiente de pluralismo e
liberdade no café da manhã. Nós sabemos o que acontece com o “percepção
popular” quando uma sociedade é alimentada por uma cobertura tendenciosa
e facciosa, como escreveu mestre Janio de Freitas. Há países que
discutem uma situação desse tipo como uma forma de “publicidade
opressiva,” que se define quando uma das partes é massacrada de modo
unilateral pelos meios de comunicação, numa intervenção que tem
influencia direta sobre uma decisão da Justiça.
Quando assume um tom unificado dessa maneira, a opinião publicada,
aquela que pertence aos editores e donos de jornal, é transformada em
opinião pública, como se fosse a voz de todos – exercício que me foi
explicado, há mais de 20 anos, quando o próprio Fernando Henrique me
recebeu em seu apartamento, em São Paulo, para esclarecer sobre uma
denuncia injusta que fora publicada numa revista onde eu trabalhava.
Numa distinção inesquecível, o sociólogo explicou que não era correto
invocar o interesse da opinião pública para justificar a publicação de
uma notícia mas apenas a “opinião publicada.”
O acúmulo de incidentes, desculpas e retratações envolvendo o presidente
do STF Joaquim Barbosa e diversos jornalistas, demonstra os riscos,
perigos e recompensas da confusão entre “opinião pública” e “opinião
publicada” na cobertura do julgamento.
Um pouco de teoria política
Esse culto “para o povo”, o discurso em nome da “percepção popular” me
leva a pensar em Hanna Arendt, uma das mais aplicadas estudiosas das
ditaduras do século XX.
Para Arendt, que produziu a maior parte de sua obra nos anos 1950 e
1960, o conceito de “ralé” que mais tarde assumiu uma conotação
pejorativa, e mesmo preconceituosa, envolvia uma categoria social
específica, de cidadãos deserdados e sem raiz, que perderam identidade
de classe, muitas vezes foram afastados de sua realidade nacional,
tornando-se disponíveis para diversos tipos de aventura política.
Hanna Arendt distinguia “ralé” de “povo” – para definir os cidadãos de
várias camadas que, com um lugar reconhecido na vida social, tem
compromissos com a defesa dos valores democráticos.
Avaliando a emergência das grandes ditaduras da primeira metade do
século passado, em As Origens do Totalitarismo Hanna Arendt escreveu:
“O que perturba os espíritos lógicos é a indiscutível atração que esses
movimentos (totalitários) exercem sobre a elite da sociedade e não
apenas sobre a ralé.”
Logo a seguir, ela acrescenta: “Essa atração da elite é um indício tão
importante para a compreensão dos movimentos totalitários quanto sua
ligação com a ralé. Denota a atmosfera específica, o clima geral que
propicia o surgimento do totalitarismo.”
Hanna Arendt observa, no mesmo texto, que um dos elementos essenciais da
construção de regimes totalitários foi a percepção de que “o mal, em
nosso tempo, exerce uma atração mórbida.” Ela acrescenta: “para a ralé,
os ‘atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de
esperteza.”
O mal, para ela, não tinha nenhum sentido religioso. Implicava no
comportamento de cidadãos que abrem mão de seus princípios políticos e
morais, de convicções, para acomodar-se burocraticamente dentro de uma
nova ordem, mesmo que isso contrarie sua formação e suas crenças
pessoais.
Já vivemos este processo em outras épocas. Este é o debate do Brasil atual.
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