João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro * Itaparica, BA, 23 de janeiro de 1941 + Rio de Janeiro, RJ, 18 de julho de 2014 |
Relembrando
No momento em que Fernando Henrique Cardoso pleiteia uma vaga na
Academia Brasileira de Letras, vem à tona esta bela carta redigida pelo
escritor João Ubaldo Ribeiro em 1998.
Não vou mais me alongar, apenas sugiro a leitura.
25 de outubro de 1998
Senhor Presidente,
Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória
estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não
gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu
respeito em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é
que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de
miseráveis que o senhor volta a presidir, o senhor merece
intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo é que o senhor
incorpora uma instituição basilar de nosso sistema político, que é a
Presidência da República, e eu devo respeito a essa instituição e
jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante
legítimo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente,
estará se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero
autor de uns pares de livros e de uns milhares de crônicas que jamais
lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.
Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que
talvez seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria
abdicar de alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há
mantido em sua vida pública – o mais importante dos quais é com a
liberdade de expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes
votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que
obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei
ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um
sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu
um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso
pensamento sociológico. Mas, como dizia antigo personagem de Jô
Soares, eu acreditei.
O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o
primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu.
O senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura
ética e política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de
causas em que acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor
acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar
crença em Deus do que negá-la, como antes. Em determinados momentos de
seu governo, o senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a
seu próprio governo, como se não fosse o senhor seu mandatário
principal. O senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na
cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava
eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem
Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o
buraco é bem mais embaixo. Político competente é Antônio Carlos
Magalhães, que manda no Brasil e, como já disse aqui, se ele fosse
candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposição, mas pelo
menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.
Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência
histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano
financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta
competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em
grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na
semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o
senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa
do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo,
enquanto escrevo, estou chorando.
Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou
espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo
mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável,
com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso
lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se
passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa
custa, a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão
impunes. Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos
corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor,
numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos
os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o
senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o
senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a
arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado. Como já pedi
na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu
torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados,
humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu
palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço
muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor
minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que
seu antecessor que hoje vive em Miami.
Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades
da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá
outra vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei
deferentemente, pois não desacato o presidente de meu país. Mas não é
necessário que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo
jeito que o senhor pode fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu
fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a
querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco
mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser
afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver
algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a
meu lugar no mausoléu dos imortais.
João Ubaldo Ribeiro
* * *
João Ubaldo Ribeiro, o baiano mundial
João Ubaldo foi-se. O último grande escritor brasileiro, romancista de
vocação, capaz de reunir qualidade literária, reconhecimento
internacional, apoio crítico e popularidade — e principalmente o carisma
de uma personalidade literária que já não existe mais. Da sua geração,
ele foi o melhor. E não há uma nova geração de escritores brasileiros
com essa magnitude.
O baiano João Ubaldo deu, de certa forma, continuidade à excelência
literária regional de Jorge Amado, que o adotou, desde muito cedo, como
pupilo. Não por acaso. Ubaldo esbanjou talento precoce, sólida formação e
um humor inigualável. Era capaz de piadas e histórias engraçadas por
horas a fio, pontuadas por suas risadas colossais, que se faziam ouvir à
distância. E seduzia sua plateia, fossem apenas amigos ou literatos de
alto calibre.
Embora tenha estreado na literatura aos 22 anos, o sucesso veio com o
instigante romance “Sargento Getúlio”, uma obra madura de um escritor de
34 anos, que lhe valeu o Prêmio Jabuti de autor revelação em 1974. Até
hoje é considerado um de seus melhores livros, talvez devido à linguagem
irônica que produzia com grande facilidade, talvez pelo retrato de uma
“brasilidade” pouco explorada, ou por sua maestria regionalista — ou
provavelmente por tudo isso.
Ubaldo foi professor de Ciências Políticas na Alemanha e fez seu
mestrado nos EUA. Tinha uma característica notável: boa parte de sua
obra foi traduzida para o inglês por ele mesmo, tarefa que lhe tomava um
bom tempo e da qual, algumas vezes, reclamava e se dizia arrependido.
Como foi o caso de “Viva o Povo Brasileiro”, uma saga brasileira de mais
de 400 páginas, linguagem rebuscada e plena de sutilezas.
Sua popularidade, no entanto, foi consolidada com “O Sorriso do
Lagarto”, uma história com pitadas fantásticas que acabou virando série
da TV Globo. Essa é uma das características de sua prosa: recriava a
realidade brasileira com grande intensidade, buscando recursos tanto no
realismo como no fantástico, fundindo cenários e personagens. Talvez
tenha sido o escritor brasileiro que mais se aproximou da voluptuosidade
literária dos grandes nomes do realismo fantástico latino-americano. A
eles, Ubaldo não devia nada.
Não se pode dizer que tenha sido um escritor notadamente produtivo. Sua
bibliografia não contém mais de dez títulos, alguns obscuros. Mas
exerceu seu ofício de escritor de modo exemplar, produzindo crônicas na
grande imprensa, participando de antologias e divulgando a qualidade
literária brasileira mundo afora. Em 1995, publicou “Um brasileiro em
Berlim”, uma pérola na forma de depoimento baseado no ano em que passou
na capital alemã a convite de uma instituição local.
Assumidamente alcóolatra, Ubaldo conseguiu largar a bebida nos últimos
tempos, o que talvez tenha lhe produzido uma certa melancolia. Casou-se
três vezes. E embora estivesse morando no Rio há mais de dez anos,
Ubaldo era um típico baiano — na literatura, no modo de falar, na graça
sensual de suas ideias malucas. Uma figura. Graças a ele, a bucólica
ilha de Itaparica, próxima a Salvador, foi eternizada, já que foi o
cenário de muitas de suas narrativas.
Foi um baiano “grandioso” por não se ater às temáticas literárias
regionais e produzir uma literatura universal, ainda que com raízes
locais. Pôde ser tão popular a ponto de ser tema de escola de samba e,
ao mesmo tempo, circunspecto o suficiente para ser eleito para a
Academia Brasileira de Letras, o que ocorreu em 1993.
É fácil dizer que a literatura brasileira perdeu um de seus maiores
escritores de todos os tempos. O difícil é aceitar que autores de seu
quilate provavelmente não surgirão tão cedo.
Roberto Amado
No DCM
* * *
Esta foi a última coluna escrita por João Ubaldo Ribeiro, que seria publicada no dia 20 de julho no O Globo
O correto uso do papel higiênico
O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma
autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui
alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos
tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do
Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas
normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que
estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a
coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a escolha da posição
do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo
científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima,
haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que
mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais
papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter
suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia,
num programa de tevê.
Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos
proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios
hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de
aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com
aplicação de multas imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos,
enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo mundo a
instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias
(milhares de novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por
escolha aleatória. Nos casos de reincidência em delitos como esfregada
ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não autorizados, tais como
assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os culpados
serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova
reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.
Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão
planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças
ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de
várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e
muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito. Por que os
brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para
quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos
industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que
não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol
altas. O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois
de algum debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único
Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras
vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a possíveis
efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente
passando mal, depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou
bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o
estado não nos tomar providências, não sei onde vamos parar.
Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de
que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o
mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser
denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer
uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em
seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é
entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente,
livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe
proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados,
a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente
se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar
uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos
que a tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada,
cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes
não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações
não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais
discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança
dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou
brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos
adultos, polícia neles.
Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e
o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado
lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso,
inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse
tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras
para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que
dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que
alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria
social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será
clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador,
reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que
ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será
acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que
devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser
comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que
precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de
pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas
para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que
vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus
direitos de cama, precatem-se.
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