Os jornais brasileiros reagem com certo distanciamento ao entrevero
verbal que coloca em rota de colisão o Brasil e Israel. A declaração
grosseira do porta-voz da chancelaria israelense — de que o Brasil é um
“anão diplomático” e um “parceiro diplomático irrelevante” — tem
potencial para detonar uma crise de proporções mais graves. E ganha
destaque na imprensa, mas deveria ser minimizada pelas evidências de que
se trata de uma manobra friamente calculada.
Ao abrir uma controvérsia com base em ironias e incontinência verbal, o
governo de Israel apenas aplica uma das técnicas mais conhecidas de
gestão de crise em comunicação. Ou alguém acha que, em meio ao sangrento
massacre de civis palestinos, entre os quais grande número de crianças e
mulheres, faltaria espaço para o uso calculado de táticas
diversionistas? Ao fim das contas, os arquivos da História estarão
lotados de declarações que serão usadas para, se não justificar, pelo
menos explicar certos crimes que a consciência comum se recusa a
aceitar.
A chuva de mísseis sobre cidades israelenses tem sido amplamente usada —
e agasalhada pela imprensa em geral — como argumento paliativo para a
ação militar de Israel. O que o governo brasileiro expressou
oficialmente foi a evidência de que, para os israelenses, não basta
anular a ofensiva do inimigo, quase inútil diante da eficiência do seu
sistema de defesa antiaérea — é preciso retaliar, e com o maior rigor
possível, para que a população palestina se convença de que não deve
abrigar militantes do Hamas.
Mal comparando, a situação lembra a circunstância em que vivia até muito
recentemente a população de certas comunidades do Rio de Janeiro, que
tinha suas casas invadidas pela polícia após os confrontos armados com
traficantes. Era do senso comum na Polícia Militar — e segue sendo, em
determinada medida — que, se os traficantes circulavam tranquilamente
pelas vielas com seus fuzis poderosos, era porque os moradores os
apoiavam. Então, um ou outro dano colateral, como as vítimas de “balas
perdidas”, tem também o objetivo didático de “ensinar” aos favelados que
não deveriam tolerar a tirania do narcotráfico.
Uma estratégia de Estado
Os jornalistas sabem que não há hipótese de um debate racional sobre o
conflito no território que se espreme entre o Rio Jordão e o
Mediterrâneo. Os judeus já estiveram inúmeras vezes na circunstância
hoje vivida pelos palestinos, e o holocausto ainda pesa como uma ressaca
sobre a cabeça da humanidade. Mas também é verdade que o Estado de
Israel, personificado na aliança política entre religiosos radicais e a
burocracia militar, se apropria da saga dos judeus para perenizar uma
situação insustentável do ponto de vista humanitário.
Para os judeus que ajudam a construir no Ocidente o etos da modernidade,
muitos dos quais militando no jornalismo, essa circunstância deve
produzir uma enorme dor de cabeça: é difícil renegar o apelo da
tradição, impossível aceitar a violência do estado contra seres humanos
indefesos.
Israel é um Estado democrático apenas para uma minoria. Nem mesmo os
turistas podem gozar de uma liberdade mais ampla como se tem, por
exemplo, em Istambul ou em Paris. Há bairros em Jerusalém onde uma
mulher ocidental não pode caminhar, mesmo acompanhada por seu marido.
As contradições do sionismo e a influência, sobre a população palestina,
de forças radicais do mundo islâmico, tornam a situação insustentável e
anulam qualquer esforço pela paz. Por esse motivo, escapa às
possibilidades da linguagem jornalística dar conta de interpretar essa
realidade, porque mesmo como intenção a objetividade nesse caso é apenas
uma ilusão. Resta, então, observar um detalhe irrelevante, como a
ironia de um diplomata empenhado em produzir uma manobra diversionista.
Ao declarar que o Brasil é protagonista menor no campo das relações
internacionais, o porta-voz da chancelaria israelense estava apenas
fazendo uma provocação que sabia eficiente. Essa intenção fica ainda
mais clara quando o diplomata se refere à recente derrota da seleção
brasileira para a Alemanha, por 7 a 1.
A imprensa devia dar menos importância a essa lorota, e fazer a conta
das vítimas: elas não são “na maioria palestinas”, como dizem os
jornais. O que está acontecendo na faixa de Gaza é um massacre. Uma
chacina deliberada, como tática militar e estratégia de Estado.
Luciano Martins Costa
No OI
Do Blog CONTEXTO LIVRE.
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