Stuart Angel Jones, assassinado pelos MILICANALHAS GOLPISTAS de 1964 |
Publicado
em 20/10/2011 por Mair Pena
Neto
Um
homem em seu leito de morte vira-se para o filho, já adulto, e lhe conta um
segredo da vida inteira; "Eu o comprei de um padre em Zaragoza". O que poderia
parecer trecho de um folhetim barato aconteceu este ano, na Espanha, e
desencadeou uma torrente de histórias semelhantes em todo o país, trazendo à
tona um trauma nacional, encoberto por um véu de vergonha e
crueldade.
A
história começou na Espanha franquista e é reveladora de como as ditaduras podem
ser mais cruéis do que imaginamos. A estimativa é de que milhares de bebês
tenham sido roubados de suas mães por enfermeiras, padres e médicos, numa
prática que, incrivelmente, se estendeu até os anos 1990. Mais de 900 casos
estão sendo investigados, novas histórias continuam a ser reveladas, e os
advogados acreditam que mais de 300 mil recém-nascidos tenham sido levados de
suas mães logo após o parto.
As
vítimas eram filhos de pais considerados "indesejáveis" pela ditadura
franquista, a maioria de famílias das classes trabalhadoras. Uma espécie de
limpeza ideológica, com aprovação do Estado e participação de médicos e da
poderosa Igreja católica sob o período de Franco. Posteriormente, o pretexto se
tornou econômico, com crianças sendo retiradas de mães pobres para serem
entregues a famílias abastadas e sem filhos.
Em
contundente e emocionante matéria na BBC, a jornalista Katya Adler valeu-se da
condição de ter dado à luz em uma clínica fundada por um médico envolvido com os
sequestros para entrevistá-lo, solicitando uma consulta. O doutor Eduardo Vela,
cujo nome aparece em muitas investigações, a recebeu em sua casa, em Madri, e
confrontado com a revelação de que estava diante de uma jornalista, pegou um
crucifixo de metal sobre a sua mesa e disse que sempre atuou em nome de
Deus.
Esta
história permanecia encoberta até os dias de hoje porque a anistia acordada
entre as forças políticas no processo de transição da ditadura franquista para a
democracia impedia as investigações. Mesmo em se tratando de crime contra a
humanidade, os casos não eram levados adiante pelo temor de tocar em velhas
feridas e de romper o pacto que silenciou as atrocidades do período mais
terrível da história espanhola.
O
governo espanhol ainda resiste a abrir um inquérito nacional, mas as famílias
estão indo à luta, descobrindo que não existem corpos nas supostas sepulturas de
seus filhos e buscando justiça. Muitos espanhóis acorrem às clínicas para exames
de DNA em busca de seus pais verdadeiros. A cicatriz espanhola ainda não se
fechou e continuará a sangrar até que sociedade e Estado tenham a dignidade de
encará-la de frente.
Zuzu
Angel, também assassinada pelos MILICANALHAS |
O
Brasil também precisa enfrentar este processo. Parece que temos vergonha da
nossa própria história, de nos revoltarmos e de não aceitarmos que um jovem de
26 anos, como Stuart Angel Jones (foto), preso pelo Estado, tenha tido sua boca
presa ao cano de descarga de um jipe e sido arrastado pelo pátio interno de uma
base militar até a morte. E que sua mãe, assim como as mães espanholas, em busca
de justiça, tenha morrido num acidente de causas
suspeitas, em São Conrado, no Rio de
Janeiro.
Batizar
o túnel que liga a Gávea a São Conrado com o nome de Zuzu Angel foi uma forma de
começar a enfrentar essa história. Mas falta muito mais. É preciso saber quem
foram os executores das torturas, desaparecimentos e mortes, e seus mandantes.
Seus nomes precisam ser revelados, como o do doutor Eduardo Vela, em Madri,
mesmo que não venham a ser punidos em nome de uma Lei da Anistia obsoleta,
estabelecida quando a correlação de forças era completamente diferente da
atual.
Mair
Pena Neto é jornalista
carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência
Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de
economia.
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