Quem militou ou estudou os acontecimentos anteriores ao golpe de 1964
sabe muito bem que a direita é capaz de combinar todas as formas de
luta. Conhece, também, a diferença entre “organizações sociais” e
“movimentos sociais”, sendo que os movimentos muitas vezes podem ser
explosivos e espontâneos.
Já a geração que cresceu com o Partido dos Trabalhadores acostumou-se a
outra situação. Nos anos 1980 e 1990, a esquerda ganhava nas ruas,
enquanto a direita vencia nas urnas. E a partir de 2002, a esquerda
passou a ganhar nas urnas, chegando muitas vezes a deixar as ruas para a
oposição de esquerda.
A direita, no dizer de alguns, estaria “sem programa”, “sem rumo”,
controlando “apenas” o PIG, que já não seria mais capaz de controlar a
“opinião pública”, apenas a “opinião publicada”.
Era como se tivéssemos todo o tempo do mundo para resolver os problemas
que vinham se acumulando: alterações geracionais e sociológicas,
crescimento do conservadorismo ideológico, crescente perda de vínculos
entre a esquerda e as massas, ampliação do descontentamento com ações (e
com falta de ações) por parte dos nossos governos, decaimento do PT à
vala comum dos partidos tradicionais etc.
Apesar destes problemas, o discurso dominante na esquerda brasileira era, até ontem, de dois tipos.
Por um lado, no petismo e aliados, o contentamento com nossas
realizações passadas e presentes, acompanhada do reconhecimento mais ou
menos ritual de que “precisamos mais” e de que “precisamos mudar
práticas”.
Por outro lado, na esquerda oposicionista (PSOL, PSTU e outros), a
crítica aos limites do petismo, acompanhada da crença de que através da
luta política e social, seria possível derrotar o PT e, no lugar,
colocar uma “esquerda mais de esquerda”.
As manifestações populares ocorridas nos últimos dias, especialmente as de ontem, atropelaram estas e outras interpretações.
Primeiro, reafirmaram que os movimentos sociais existem, mas que eles
podem ser espontâneos. E que os autoproclamados “movimentos sociais”,
assim como os partidos “populares”, não conseguem reunir, nem tampouco
dirigir, uma mínima fração das centenas de milhares de pessoas dispostas
a sair ás ruas, para manifestar-se.
Em segundo lugar, mostraram que a direita sabe disputar as ruas, como
parte de uma estratégia que hoje ainda pretende nos derrotar nas urnas.
Mas que sempre pode evoluir em outras direções.
Frente a esta nova situação, qual deve ser a atitude do conjunto da
esquerda brasileira, especialmente a nossa, que somos do Partido dos
Trabalhadores?
Em primeiro lugar, não confundir focinho de porco com tomada. As
manifestações das últimas semanas não são “de direita” ou "fascistas".
Se isto fosse verdade, estaríamos realmente em péssimos lençóis.
As manifestações (ainda) são expressão de uma insatisfação social difusa
e profunda, especialmente da juventude urbana. Não são
predominantemente manifestações da chamada classe média conservadora,
tampouco são manifestações da classe trabalhadora clássica.
A forma das manifestações corresponde a esta base social e geracional:
são como um mural do facebook, onde cada qual posta o que quer. E tem
todos os limites políticos e organizativos de uma geração que cresceu
num momento "estranho" da história do Brasil, em que a classe dominante
continua hegemonizando a sociedade, enquanto a esquerda aparentemente
hegemoniza a política.
A insatisfação expressa pelas manifestações tem dois focos: as políticas públicas e o sistema político.
As políticas públicas demandadas coincidem com o programa histórico do
PT e da esquerda. E a crítica ao sistema político dialoga com os motivos
pelos quais defendemos a reforma política.
Por isto, muita gente no PT e na esquerda acreditava que seria fácil
aproximar-se, participar e disputar a manifestação. Alguns, até,
sonhavam em dirigir.
Acontece que, por sermos o principal partido do país, por conta da ação
do consórcio direita/mídia, pelos erros politicos acumulados ao longo
dos últimos dez anos, o PT se converteu em símbolo principal do sistema
político condenado pelas manifestações.
Esta condição foi reforçada, nos últimos dias, pela atitude desastrosa
de duas lideranças do PT: o ministro da Justiça, Cardozo, que ofereceu a
ajuda de tropas federais para o governador tucano “lidar” com as
manifestações; e o prefeito Haddad, que nem na entrada nem na saída teve
o bom senso de diferenciar-se do governador.
O foco no PT, aliado ao caráter progressista das demandas por políticas
públicas, fez com que parte da oposição de esquerda acredita-se que
seria possível cavalgar as manifestações. Ledo engano.
Como vimos, a rejeição ao PT se estendeu ao conjunto dos partidos e
organizações da esquerda político-social. Mostrando a ilusão dos que
pensam que, através da luta social (ou da disputa elietoral) seriam
capazes de derrotar o PT e colocar algo mais à esquerda no lugar.
A verdade é que ou o PT se recicla, gira à esquerda, aprofunda as
mudanças no país; ou toda a esquerda será atraída ao fundo. E isto
inclui os que saíram do PT, e também os que nos últimos anos flertaram
abertamente com o discurso anti-partido e com o nacionalismo. Vale
lembrar que a tentativa de impedir a presença de bandeiras partidárias
em mobilizações sociais não começou agora.
O rechaço ao sistema político, à corrupção, aos partidos em geral e ao
PT em particular não significa, entretanto, que as manifestações são da
direita. Significa algo ao mesmo tempo melhor e pior: o senso comum saiu
às ruas. O que inclui o uso que vem sendo dado nas manifestações aos
símbolos nacionais.
Este senso comum, construído ao longo dos últimos anos, em parte por
omissão e em parte por ação nossa, abre enorme espaço para a direita.
Mas, ao mesmo tempo, à medida que este senso comum participa abertamente
da disputa política, cria-se condições melhores para que possamos
disputá-lo.
Hoje, o consórcio direita/mídia está ganhando a disputa pelo pauta das
manifestações. Além disso, há uma operação articulada de participação da
direita, seja através da presença de manifestantes, seja através da
difusão de determinadas palavras de ordem, seja através da ação de
grupos paramilitares.
Mas a direita tem dificuldades para ser consequente nesta disputa. O
sistema político brasileiro é controlado pela direita, não pela
esquerda. E as bandeiras sociais que aparecem nas manifestações exigem,
pelo menos, uma grande reforma tributária, além de menos dinheiro
público para banqueiros e grandes empresários.
É por isto que a direita tem pressa em mudar a pauta das manifestações,
em direção a Dilma e ao PT. O problema é que esta politização de direita
pode esvaziar o caráter espontâneo e a legitimidade do movimento; além
de produzir um efeito convocatória sobre as bases sociais do lulismo, do
petismo e da esquerda brasileira.
Por isto, é fundamental que o PT e o conjunto da esquerda disputem o
espaço das ruas, e disputem corações e mentes dos manifestantes e dos
setores sociais por eles representados. Não podemos abandonar as ruas,
não podemos deixar de disputar estes setores.
Para vencer esta disputa teremos que combinar ação de governo, ação
militante na rua, comunicação de massas e reconstruir a unidade da
esquerda.
A premissa, claro, é que nossos governos adotem medidas imediatas que
respondam às demandas reais por mais e melhores políticas públicas. Sem
isto, não teremos a menor chance de vencer.
Não basta dizer o que já fizemos. É preciso dar conta do que falta
fazer. E, principalmente, explicar didaticamente, politicamente, as
ações do governo. Marcando a diferença programática, simbólica,
política, entre a ação de governo de nosso partido e os demais.
O anúncio conjunto (Alckmin/Haddad) de redução da tarifa e a oferta da
força pública feita por Cardozo a Alckmin são exemplos do que não pode
se repetir. Para não falar das atitudes conservadoras contra os povos
indígenas, da atitude complacente com setores conservadores e de
direita, dos argumentos conservadores que alguns adotam para defender
as obras da Copa e as hidroelétricas etc.
Para dialogar com o sentimento difuso de insatisfação revelado pelas
mobilizações, não bastam medidas de governo. Talvez tenha chegado a
hora, como algumas pessoas têm sugerido, de divulgarmos uma nova “carta
aos brasileiros e brasileiras”. Só que desta vez, uma carta em favor das
reformas de base, das reformas estruturais.
Quanto a nossa ação de rua, devemos ter presença organizada e massiva
nas manifestações que venham a ocorrer. Isto significa milhares de
militantes de esquerda, com um adequado serviço de ordem, para proteger
nossa militância dos para-militares da direita.
É preciso diferenciar as manifestações de massa das ações que a direita
faz dentro dos atos de massa. E a depender da evolução da conjuntura,
nos caberá convocar grandes atos próprios da esquerda político-social.
Independente da forma, o fundamental, como já dissemos, que a esquerda não perca a batalha pelas ruas.
Quanto a batalha da comunicação, novamente cabe ao governo um papel
insubstituível. No atual estágio de mobilização e conflito, não basta
contratacar a direitas nas redes sociais; é preciso enfrentar o que
dizem os monopólios nas televisões e rádios. O governo precisa entender
que sua postura frente ao tema precisa ser alterada já.
Em resumo: trata-se de combinar ruas e urnas, mudando a estratégia e a conduta geral do PT e da esquerda.
Não há como deslocar a correlação de forças no país, sem luta social. A
direita sabe disto tanto quanto nós. A direita quer ocupar as ruas. Não
podemos permitir isto. E, ao mesmo tempo, não podemos deixar de
mobilizar.
Se não tivermos êxito nesta operação, perderemos a batalha das ruas hoje
e a das urnas ano que vem. Mas, se tivermos êxito, poderemos colher
aquilo que o direitista Reinaldo Azevedo aponta como risco (para a
direita) num texto divulgado recentemente por ele, cujo primeiro
parágrafo afirma o seguinte: "o movimento que está nas ruas provocará
uma reciclagem do PT pela esquerda, poderá tornar o resultado das urnas
ainda mais inóspito para a direita".
Num resumo: a saída para esta situação existe. Pela esquerda.
Valter Pomar, dirigente nacional do PT e Secretário Executivo do Foro de São Paulo.
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