domingo, 30 de junho de 2013

De olho na Historia: Vai passar?



por Carô Murgel (historiadora) (Notas) em Sexta, 21 de Junho de 2013 às 13:25 



Ouvindo hoje os jornais falarem sobre a manifestação ontem em Campinas, fiquei pensando o quanto de manipulação a imprensa, especialmente a Globo, tenta impingir aos telespectadores através das mesmas edições de imagens que assistimos no debate de Lula e Collor em 1989.



Eu estava lá, em frente à prefeitura com um grupo de amigos – chegamos na primeira leva da passeata das 70.000 pessoas que tomaram as ruas. A prefeitura estava cheia de jovens, famílias, crianças, idosos. Nos 10 minutos que conseguimos ficar ali antes das explosões das bombas da Guarda Municipal (ops, a responsabilidade pela ação dessa guarda, não esqueçamos, é do prefeito Jonas Donizette, do PSB)  não assistimos nenhum ato de “vandalismo”. E quando começamos a caminhar para deixar o local ouvimos as explosões e sentimos os gases que nos fecharam a garganta e ardiam nos olhos e na boca – a polícia jogou bombas em toda frente da prefeitura, atingindo crianças, idosos, todas as pessoas que ali estavam indistintamente. Pedras? Se jogaram alguma, não vimos, mas vimos pessoas caindo, sufocadas por gases, uma garota de uns 12 anos desmaiada sendo carregada por pessoas desesperadas procurando ajuda.



O que vimos foi um ato de covardia sem tamanho – toda aquela população em frente à prefeitura subiu correndo pela Barreto Leme, uma parte ficou acuada no posto de gasolina na esquina com a Anchieta, o vento levando os gases para cima dos manifestantes. Cena de guerra, de desespero. Uso desproporcional de força, covardia da polícia, do prefeito, dos que deveriam garantir a tranquilidade e o direito da população de ocupar os seus espaços.



Eu que sou a mais pacífica das criaturas senti a ira subir pelo tamanho da covardia, se tivesse encontrado um fardado no caminho também teria vontade de dar umas bolachas bem dadas, por cada uma daquelas pessoas atingidas. Conseguimos sair sem ser pisoteados, porque saímos colados às paredes.



Depois disso Campinas virou uma praça de guerra. Se havia uma minoria violenta, acredito que muitas outras pessoas pacíficas depois dessa recepção policial também atacaram por indignação. Muitas pessoas querendo voltar para defender os que ficaram da violência policial. Nas imagens hoje na Globo, as pedras atiradas foram nesse segundo momento – eles inverteram, fazendo parecer que a população atacou primeiro. Não estou dizendo que não possam ter acontecido agressões antes, mas estávamos olhando para a prefeitura, e o que víamos era muito pacífico, com a população garantindo que pequenos atos exaltados fossem acalmados. Se naquele momento houve de fato, como diz a imprensa, agressão por parte de manifestantes, a resposta policial foi desproporcional.



Estão todos perdidos em relação às manifestações, especialmente a classe política. O que não entenderam? A manifestação que causou a explosão de todas as outras foi em São Paulo – uma manifestação pacífica que foi atacada pela polícia, onde os manifestantes que estavam ali exclusivamente para pedir redução das tarifas foram chamados de vândalos e baderneiros pelo Geraldo Alckmin e pela Globo. O ataque covarde lá (como foi em Campinas ontem) despertou a população – a partir dali o movimento se tornou essa coisa difusa de todas as causas. A gota d’água, creio eu, não foram os 20 centavos, foi a violência do Governo do Estado de São Paulo pela atuação de sua polícia contra manifestantes de uma causa mais do que legítima. E quantas outras causas legítimas temos?



No geral, o que tivemos até agora é uma afronta da classe política aos direitos constitucionais, e com base nas manifestações, podemos listar algumas dessas afrontas:

  1. A origem das manifestações: transporte público. Vários estudos mostraram que proporcionalmente, pagamos o transporte mais caro do mundo, com qualidade mínima. Os incentivos governamentais são em prol das montadoras e do transporte individual. Como os brasileiros vão deixar o carro se a tendência é que sejam tratados como sardinha em lata? Por que o custo é tão alto? Qual é o lucro real dos donos do transporte coletivo? O que ouvimos é que os prefeitos pensam em novos tributos para “compensar” o subsídio.  Hein?
  2. Tá lá na Folha: “Pela quarta vez seguida, o Brasil aparece entre os 30 países do mundo que mais cobram impostos do mundo. Também pela quarta vez, o país ocupa a lanterna em termos de qualidade dos serviços públicos prestados à população”. http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/04/16/brasil-cobra-imposto-caro-mas-e-o-da-menos-que-retorno-a-sociedade.htm. Pra onde vai esse dinheiro? Para dar o mínimo exigido pela constituição que é a qualidade nos serviços vamos precisar de mais impostos? Pra onde vai o dinheiro?
  3. Corrupção no Brasil. O site Jusbrasil estimava, em 2011, o valor em R$ 69,1 bilhões de reais, 2, 3% do PIB na época. O PIB caiu, mas temos certeza que a corrupção não. Ah, por isso precisamos aumentar os impostos, claro. Estamos sustentando mal a corrupção. (http://sindjufe-mt.jusbrasil.com.br/noticias/2925465/o-preco-da-corrupcao-no-brasil-valor-chega-a-r-69-bilhoes-de-reais-por-ano)
  4. Nas últimas eleições a bancada evangélica no congresso aumentou em 75%. Deve ser por conta do milagre que acontece ali, nada laico: o milagre da multiplicação do patrimônio pessoal de deputados e senadores. Coisa bonita de se ver, desperta a fé religiosa. http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1365176&tit=Bancada-evangelica-seria-3-partido-da-Camara e http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,deputados-justificam-crescimento-de-bens,684995,0.htm
  5. A educação pública é um engodo. Com salários baixos, a grande massa de professores que ainda se propõe a ensinar nas escolas públicas é semi-alfabetizada (sim, há exceções, mas a maior parte não consegue escrever um texto com coerência). O salário atual em São Paulo foi para R$ 2.257,84 (sem os descontos, claro). O salário inicial de um policial militar é de R$ R$2.563,28. Onde a classe política não entendeu que a única coisa que pode derrubar a criminalidade é a Educação – e com qualidade? Querem aprender com a Finlândia como se faz? http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,na-finlandia-a-profissao-de-professor-e-valorizada-,1035943,0.htm. Vejam que lá Humanidades e Artes são valorizadas, ao contrário do Brasil, onde a baixa prioridade é exatamente sobre essas áreas: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2013/06/1298041-e-mails-revelam-divergencias-em-programa-de-bolsas.shtml
  6. Na saúde, assistimos uma grande privatização, já que os hospitais públicos também se tornaram zonas de guerra, sem médicos, sem equipamentos, sem a mínima infra-estrutura para funcionamento. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=NyeS-9cozso. Não há dinheiro para gaze e esparadrapo, mas o custo de gastos com as obras para as Copas subiu para R$ 28 bilhões. Ronaldo, esse ícone da Globo e do futebol acha óbvio: futebol é mais importante que a saúde, é um absurdo querer hospital se o que precisamos é de estádios. https://www.youtube.com/watch?v=SuHTkFC_Zyc;
  7. Mais de um milhão e meio de assinaturas foram entregues ao Congresso Nacional pedindo o afastamento de Renan Calheiros do senado. O ato foi solenemente ignorado pelo congresso, assim como as manifestações exigindo o afastamento de Feliciano da Comissão de Direitos Humanos. O pastor não se cansa de suas declarações misóginas, homofóbicas e racistas. Acabou de aprovar a “cura gay”, um ato evidente de desrespeito à Constituição Brasileira – assim como o são as suas declarações. A Câmara ignora, e ignora com isso direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. http://oglobo.globo.com/pais/manifestantes-entregam-16-milhao-de-assinaturas-pela-queda-de-renan-calheiros-7629464 e http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1297075-proposta-sobre-cura-gay-e-aprovada-em-comissao-presidida-por-feliciano.shtml
  8. Se no caso anterior o pastor passou por cima de todas as recomendações mundiais – desde os anos de 1970 e sobre o Conselho de Psicologia, por outro lado garante o corporativismo médico com o Ato Médico, desconsiderando todas as outras categorias da área de saúde.: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2013/06/1297761-aprovado-ontem-pelo-senado-ato-medico-tera-impacto-no-sus.shtml
  9. O corporativismo se estende, é claro, aos próprios congressistas, que com as PECs 33 e 37 querem garantir que a corrupção não seja punida: http://www.nacaojuridica.com.br/2013/06/entenda-tudo-sobre-pec-37-e-pec-33.html?m=1
  10. O Estado e a bancada religiosa continuam mantendo as mulheres reféns do corpo: é a única “minoria” que tem seus direitos de escolha castrados legalmente, o que foi ampliado de forma absurda pela PEC 164, sobre os direitos do Nacituro, que inclui a chocante proposta de uma “bolsa estupro”. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1295831-protesto-contra-estatuto-do-nascituro-reune-1500-pessoas-na-praca-da-se-em-sp.shtml.   Tratadas como objetos ou “caixotes de reprodução”, não é à toa que a violência contra as mulheres no Brasil é monstruosa (http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/03/violencia-contra-mulher-brasil-avanca-mas-problemas-persistem.html) Desnecessário dizer que Feliciano tem se esforçado nessa frente também: http://oglobo.globo.com/pais/feliciano-quer-votar-bolsa-estupro-na-comissao-de-direitos-humanos-8715450 .



Lembro que no fim da Ditadura Militar, em 1985, a música que representava aquele momento era Vai Passar, de Francis Hime e Chico Buarque, cujo trecho que todos cantavam com fervor era “Dormia a nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações”. 30 anos depois, o que essa moçada está dizendo é, ainda, isso.






Vai passar

(Francis Hime e Chico Buarque)



Vai passar

Nessa avenida um samba popular

Cada paralelepípedo

Da velha cidade

Essa noite vai se arrepiar

Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais

Que aqui sangraram pelos nossos pés

Que aqui sambaram nossos ancestrais



Num tempo

Página infeliz da nossa história

Passagem desbotada na memória

Das nossas novas gerações

Dormia

A nossa pátria mãe tão distraída

Sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações



Seus filhos erravam cegos pelo continente

Levavam pedras feito penitentes

Erguendo estranhas catedrais

E um dia, afinal

Tinham direito a uma alegria fugaz

Uma ofegante epidemia

Que se chamava carnaval

O carnaval, o carnaval

(Vai passar)



Palmas pra ala dos barões famintos

O bloco dos napoleões retintos

E os pigmeus do bulevar

Meu Deus, vem olhar

Vem ver de perto uma cidade a cantar

A evolução da liberdade

Até o dia clarear



Ai, que vida boa, olerê

Ai, que vida boa, olará

O estandarte do sanatório geral vai passar

Ai, que vida boa, olerê

Ai, que vida boa, olará

O estandarte do sanatório geral

Vai passar

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