Esperança
para muitos de dias melhores na política no Brasil, a provável
candidata à Presidência Marina Silva viu-se envolvida numa polêmica ao
dizer que o pastor e deputado Marco Feliciano é criticado “por ser
evangélico e não tanto por suas posições política”. Face às reações, a
ex-senadora foi obrigada a esclarecer melhor sua frase, mas fica a
questão sobre o que significa mesmo ser evangélico e em que medida
certos líderes religiosos tem a ver com os atos e as palavras de Jesus.
O pastor Feliciano oferece pistas valiosas para uma tentativa de
resposta. Especialmente pela eloquente metáfora de um crime virtual que
ele publicamente cometeu.
Numa de suas
prédicas contra a santidade aparente dos fariseus, Jesus diz que todo o
oculto será um dia proclamado dos telhados. Graças à hoje quase divina
onipresença de celulares que filmam, esse tempo de onisciência parece
ter chegado.
E foi assim que alguns canais de
televisão puderam reproduzir uma cena estarrecedora. Durante um culto, o
pastor e deputado Marco Feliciano, todo vestido de branco, lamentava
não ter estado presente na morte de John Lennon para desfechar mais
três tiros no corpo caído: um pelo Pai, outro pelo Filho e o terceiro
pelo Espírito Santo. Microfone numa das mãos, revólver imaginário na
outra, chegou a encenar para os fiéis como seria o seu ato.
A
cena, deprimente, desperta em cristãos mais sensíveis ao que importa a
necessidade de rever algumas facetas do explosivo crescimento
midiático e comercial de certos grupos evangélicos, e de fazer isso em
termos estritamente – evangélicos.
Uma dessas
facetas é a relação com o dinheiro. O evangelho de Jesus é claro e
radical ao pregar o desapego das riquezas deste mundo – “não se pode
servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro”. No entanto, recentemente
a revista norte-americana Forbes colocou seis dos nossos mais
combativos líderes evangélicos entre os homens pessoalmente mais ricos
do Brasil. O que não é de estranhar, tal a criatividade e fervor com
que o pecado da simonia, ou venda de favores divinos, é praticado em
cultos onde a conta bancária da Igreja rivaliza em citações com os
versículos sagrados. Neles, os fiéis são constantemente estimulados a
fazer suas ofertas, “mas só se Deus lhes pedir isso no fundo dos seus
corações, diz o pastor com voz melíflua, como se aquelas vidas já tão
vulneráveis estivessem em condições de ficar mal com Deus também.
Outro
ponto igualmente delicado nessas igrejas mundanamente tão vitoriosas é
a questão do poder. Em várias passagens o evangelho é claro ao dizer
que o Reino de Jesus não é deste mundo – “dai a César o que é de César e
a Deus o que é de Deus” é a mais conhecida expressão dessa verdade.
Quando, depois da partilha dos pães, quiseram fazê-lo rei, Jesus “fugiu
dali para o outro lado do lago”. No entanto, entre nossos líderes
evangélicos mais creditados na Forbes, é intensa a participação no jogo
político- partidário do país, não como cidadãos, mas acintosamente em
nome dos votos do rebanho, formando avidamente bancadas evangélicas
como se delas, por força de lei, devesse vir uma salvação que, como o
evangelho insiste, é de outra ordem. Qualquer pessoa verdadeiramente
religiosa sabe que não é pelo poder, dinheiro, milagres grotescos e
truques de marketing que o reino de Deus avança.
Evangelho
quer dizer boa-nova e alguns empresários da fé mal desconfiam que, com
sua fixação em dinheiro e poder, estão apenas reproduzindo o pior da
Igreja Católica em outras eras. Foi ao unir-se ao Império Romano no
século IV que ela se desfigurou a ponto de passar séculos sofrendo toda
a sorte de interferências mundanas em sua real missão. Foi vendendo
indulgências para construir grandes templos que em Roma que ela
deflagrou, e mereceu, a Reforma Protestante. A mistura de religião com
poder civil sempre se revelou receita infalível de guerras e
perseguições sem fim e nem é preciso ser um grande estudioso para
constatar o quanto, na história da humanidade, o pecado e a dúvida
mataram muito menos do que certo tipo pureza e de fé.
Triste
perceber também o quanto essa militância política de líderes
evangélicos em nada revela aquela chama sagrada dos grandes profetas de
Israel que não temiam enfrentar os poderosos em nome dos mais fracos e
mais pobres. O mal, para os eleitos da Forbes, nunca está nas
estruturas injustas, corruptas e opressoras. Nenhum deles vai morrer
como o pastor Martin Luther King morreu pelos direitos dos negros, ou
sofrer como o bispo Desmond Tutu sofreu apoiando Mandela contra o
apartheid, ou levar uma bala no coração em pleno altar como Dom Oscar
Romero durante a sangrenta ditadura de El Salvador, ou ter de fugir do
Brasil como fez a Irmã Giustina por ousar encarar a elite de São
Gabriel da Cachoeira que estuprava meninas índias. Por pouco ela não
tem o mesmo destino da Irmã Dorothy no Pará.
Enfrentar
as injustiças dos poderosos pode pegar mal para o negócios e depois,
diria o Pastor Feliciano, aquelas meninas eram apenas umas indiazinhas,
não eram negras nem homossexuais. Melhor, então, chutar beatle morto.
Melhor lutar para impedir que seja aprovado no Brasil esse grande
responsável pela injustiça, a miséria, o analfabetismo, a alta da
inflação, a falta de saneamento básico, o descontrole dos gastos
públicos e o desmatamento ilegal : o casamento gay.
Jesus
se refere a essa magnificação da irrelevância para encobrir o que
importa quando diz que os fariseus são mestres em “coar mosquitos e
engolir camelos”.
Vale lembrar, no entanto,
que, silenciosamente, muitas igrejas evangélicas bem sabem que nada tem
de evangélico esse uso de Deus para excluir e perseguir quem quer que
seja, ou aquele tipo de pureza que precisa do impuro para brilhar,
combater, explorar ou, vestido de branco, matar.
Esses
arroubos de ira falsamente sagrada são úteis apenas na medida em que
nos lembram algumas verdades bem comprovadas na prática: que nada é
mais tóxico do que uma pureza infeliz, que o nazismo era, em última
análise, uma forma de pureza e que não precisa esperar muito para
constatar que todo o moralista extremado alguma está escondendo,
aprontando ou levando por fora.
Mas é
reconfortante pensar que nada disso vem do evangelho. Nas palavras e
nos atos de Jesus, a fronteira entre o bem e o mal nunca se passa entre
raças, seitas, partidos ou opções sexuais, mas pelo coração de cada
um, diariamente. O que ele mais pedia aos seus seguidores não deveria
vir de fora, das aparências e conveniências sociais, mas de dentro, do
coração . E eram coisas bem simples e libertadoras: um amor tão
indiscriminado como o sol e a chuva que igualmente vivificam a horta
dos santos e dos pecadores; um amor tão eficiente como o do bom
samaritano que recolhe (e não chuta) o esquecido à beira da estrada; um
desapego radical aos deuses deste mundo, dinheiro, poder e vaidades;
uma confiança, nas difíceis, semelhante à dos pássaros do céu e dos
lírios do campo; e, principalmente, trabalhar todos os dias e todas as
formas pelo advento do Reino de Deus, um reino de fraternidade e paz, a
cujo serviço estão, ou deveriam estar, as organizações religiosas em
seu nome formadas.
.oOo.
Carlos Moraes
é jornalista, escritor e formado em Teologia. Publicou, pela Editora
Record: Como ser feliz sem dar certo e outras histórias de salvação pela
bobagem, Agora Deus vai te pegar lá fora e Desculpem, sou novo aqui.
No Sul21
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Um comentário:
Excelente texto, disse tudo e mais um pouco,são ludibriadores da fé de pessoas as vezes em desespero, mas há a lei de retorno quem planta colhe.
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