Os EUA no abismo, de Ellsberg a Snowden
Paulo Moreira Leite
Paulo Moreira Leite
A perseguição a Edward Snowden é um episódio típico de nosso tempo.
Antigo funcionário da CIA, responsável pela revelação de que o governo
americano possui uma máquina de espionagem de dimensões que superam
temores que até ontem comentaristas de ar arrogante definiriam como
“paranoia”, Snowden é o mais novo fugitivo da liberdade de expressão.
Encontra-se no mesmo patamar no qual o soldado Bradly Manning aguarda
julgamento, pelo vazamento de milhares de documentos do Departamento de
Estado, que derrubaram diversas máscaras da diplomacia norte-americana.
Também lhe faz companhia, claro, Julian Assange, o criador do Wikileaks,
até hoje à espera de um salvo conduto na embaixada do Equador em
Londres.
O patrono desses personagens típicos da sociedade de comunicação de
massas chama-se Daniel Ellsberg, o cidadão que em 1971 fez o favor de
revelar, através do New York Times, os célebres papéis do Pentágono.
Ali, um conjunto de documentos secretos mostrava que o governo dos EUA
sabia perfeitamente que a guerra do Vietnã era uma causa perdida, mas
preferia seguir enviando os jovens pobres e negros da América para a
morte em vez de enfrentar a elite imperial americana e negociar uma
saída pacífica.
O destino de Ellsberg e de seus sucessores contém lições didáticas sobre nosso tempo.
Ellsberg foi perseguido, julgado – e absolvido. Nos anos 1970, os
Estados Unidos estavam em guerra e seu gesto foi tratado como uma
traição, pois ele proporcionava “conforto ao inimigo”. O New York Times
foi alvo de censura e, durante duas semanas, impedido de circular, fato
raríssimo na história americana.
Mas considerou-se que Ellsberg tinha o direito de revelar aos cidadãos
americanos informações que eram de seu legítimo interesse. Um esforço de
agentes secretos da Casa Branca para desmoralizá-lo terminou em fiasco e
seus detalhes vieram a público. Descobriu-se que homens de confiança do
governo Nixon haviam tentado penetrar em seus arquivos médicos para
retratá-lo como louco. Foi mais um motivo para que Ellsberg fosse
considerado inocente, deixando o escândalo para entrar na história da
luta contra a guerra do Vietnã e da liberdade de expressão.
Quatro décadas depois, a situação é outra. Não há hipótese de Bradley
Manning ser considerado inocente, ainda que seja impossível apontar um
único caso em que as informações que ajudou a revelar tenham ameaçado
vidas humanas ou causado prejuízos a interesses legítimos da política
externa americana. Em nenhum momento se demonstrou que Manning não tinha
o direito (ou quem sabe o dever) de divulgar as informações a que teve
acesso.
Num sintoma do momento político, não se questiona a natureza de suas
acusações nem se pergunta se o melhor local para um julgamento onde as
liberdades civis estão em jogo é um tribunal militar – onde a questão
disciplinar irá sobrepor-se sobre qualquer outra consideração.
Na perseguição a Assange, não falta sequer uma anedota pessoal, como
ocorreu com Ellsberg. No caso, é uma obscura acusação de estupro feita
na Suécia.
No mundo de Ellsberg um “traidor” saiu livre do tribunal.
Herbert Marcuse, um dos mestres da contestação nos tempos de Ellsberg,
fez uma crítica conhecida da sociedade contemporânea. Dizia que ela
criava o homem unidimensional, aquele que não convivia com contradições
nem conflitos, enxergando a realidade a partir de suas aparências e
mistificações. Marcuse era uma ótima leitura nos anos 1960, mas é
curioso imaginar o que poderia ter escrito sobre o mundo de hoje.
Manning, Assange e Snowden não são personagens fora de lugar. São
rebeldes num mundo conformista, onde a democracia costuma ser posta à
prova com frequência surpreendente pelo governo norte-americano.
A perseguição implacável aos responsáveis pelo vazamento do Wikileaks e
pela reportagem que denunciou o tamanho da espionagem mundial dos EUA
fazem parte da mesma máquina que produziu e protege Guantánamo, onde
cidadãos acusados de terrorismo foram sequestrados e torturados e já
passaram mais de dez anos na prisão.
Como não há provas substanciais contra eles além de inaceitáveis
declarações prestadas sob tortura, que a decência impede que sejam
chamadas de “confissões“, palavra que tem o pressuposto de terem como
base a verdade, a única atitude razoável seria mandar todos para casa
após tanto tempo.
Como ocorria no Vietnã, falta coragem – e força política – para enfrentar os erros e contradições do império.
Não é pura coincidência que pelo menos um personagem tenha frequentado esses dois momentos.
A abertura dos arquivos das operações contra Ellsberg revelou que nos
bastidores do governo Nixon já atuava um assessor presidencial chamado
Donald Rumsfeld. Quatro décadas depois, como secretário de Defesa de
George W. Bush, Rumsfeld foi denunciado pela liberação da tortura como
método de investigação militar depois do 11 de setembro.
O personagem do momento é Barack Obama, que oferece uma nova prova de
melancólica fraqueza política para dar um mínimo de coerência entre
palavras e atos. Como Marcuse poderia ter dito, o homem unidimensional
atingiu um nível absoluto no governo Obama.
Suas decisões e gestos são movimentos de uma máquina implacável, que
avança sobre direitos que se pensava sagrados e devora conquistas de
valor histórico.
O desrespeito às liberdades individuais e privacidade de milhões de
pessoas mostra uma postura sem freios nem pudores para defender aquilo
que a Casa Branca considera seus interesses.
Imagine o destino reservado a quem pretender confrontá-los, não é mesmo?
A própria sociedade americana mudou. Há 40 anos, houve uma reação de
solidariedade a favor de Ellsberg. Com o New York Times sob censura, o
Washington Post, que havia tomado o furo, passou a divulgar os papéis do
Pentágono, oferecidos pelo mesmo Ellsberg. E agora?
Pouco a pouco, muitas publicações que divulgaram os textos do Wikileaks preferiram tomar distância de Julian Assange.
O julgamento de Bradley Manning ocorre em ambiente de segredo, e isso
não gera grande emoção dentro ou fora dos Estados Unidos. Edward Snowden
já é descrito como “delator” pelos meios de comunicação – palavra que
envolve um juízo negativo e aponta para a criminalização de um gesto
político.
Em declaração recente, o já velhinho Ellsberg voltou à cena e declarou
que a democracia encontra-se à beira do abismo, nos EUA – e é bom
refletir sobre o que ele diz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário