Brasil 247
Breno Altman, especial para o 247
Breno Altman, especial para o 247
O título é um petardo que coraria escritores mais tarimbados e
talentosos. O jornalista Otávio Cabral, da equipe de "Veja", não deixou
por menos: "Dirceu, a biografia". Um recorde incrível foi batido pelo
autor, que deixaria humilhados biógrafos de maior fama: levou apenas
seis meses para pesquisar e escrever "a" obra definitiva sobre
personagem crucial da história política brasileira, cuja vida pública
percorre quase cinquenta anos.
Patrocinado pela revista que paga seu salário, publicação notória pela
isenção quando o assunto é José Dirceu, Cabral mereceu capa em edição
desta semana, na lambuja de artigo assinado por Thaís Oyama, sua chefe
imediata. A empreitada foi carimbada como "completa e surpreendente".
A resenhadora, aliás, recebe derretidos agradecimentos, no próprio
livro, por ter ajudado a "melhorar o texto" e tirar o escriba de
"algumas enrascadas". Mas essa aparente promiscuidade é um detalhe
irrelevante para os elevados padrões éticos que vicejam na editora
situada às margens do rio Pinheiros.
Tampouco tem importância a opinião do pretenso biógrafo, ainda que o
grau de intoxicação vá bem além do admissível. Fernando Morais, renomado
escritor de esquerda, fez da vida de Assis Chateaubriand, homem de
direita, obra prima da biografia. Otávio Cabral, repórter a serviço da
mídia fascistóide, porém, não escreveu sobre seu personagem, mas contra
ele. Isso era de se esperar. A marca registrada dos jornalistas de
"Veja", afinal, com raríssimas exceções, é ostentar os mais aclamados
prêmios no vale-tudo que tantaliza boa parte da imprensa tradicional.
Fundamental mesmo é que o livro não passa de uma fraude, da primeira à
última linha. Uma enganação. Um desrespeito ao leitor e ao código de
defesa do consumidor. O que a revista anuncia e o escritor promete não
passam de propaganda enganosa e abusiva. Ambos sonegam informações
relevantes, conduzem ao erro e prejudicam o conhecimento da verdade.
Para começo de conversa, Cabral simplesmente omite a lista dos
entrevistados para a biografia. Ninguém sabe quem testemunhou ou
declarou a maior parte dos fatos. O autor fala em 63 pessoas com quem
teria encontrado na fase de pesquisas. Pouquíssimas são citadas nas
notas de rodapé. Qualquer biografia que se preza registra as fontes de
investigação.
A jornalista Mônica Bergamo, em post no Facebook, já desmentiu relato no
qual se viu citada. Certamente não será a única. Fernando Morais, que
não foi ouvido pelo autor, também repele como falsos os momentos nos
quais é referido. Eu mesmo fui tratado, em determinada passagem, como
"porta-voz de Dirceu para momentos delicados, como o sequestro de Abílio
Diniz". Não apenas é uma deslavada mentira, como Cabral, por quem
aceitei ser entrevistado, jamais me perguntou a esse respeito.
A maior parte das passagens é mera republicação, às vezes literal, de
reportagens da própria "Veja" ou de outros veículos, difundidas nas
últimas décadas. O autor não se dá ao trabalho de cotejar informações e
testemunhos, verificar fatos, refazer caminhos. Seu desempenho não vai
além de um colegial que pesquisa algum tema no Google e copia
acriticamente o que vê pela frente. Se o livro fosse um TCC – o Trabalho
de Conclusão de Curso que as faculdades de jornalismo exigem de seus
alunos, Cabral teria levado bomba.
Não vacila em agir com este despudor sequer ao recorrer a arquivos da
ditadura militar. Documento assinado pelo delegado Alcides Cintra Bueno
Filho, torturador de carteira registrada no DOPS paulista, relata que
Dirceu teria sequestrado, em 1968, estudantes ligados ao Comando de Caça
aos Comunistas (CCC). No texto sofrível de Cabral, é o que basta para
ser apresentado como fato líquido e certo. E esse é apenas um exemplo.
Outro mais? Lá pelas tantas, o autor conta que Dirceu teria participado
de uma ação, em 1972, que resultaria no assassinato de um sargento da
Polícia Militar. A fonte? Relatórios do II Exército, que se referem a
uma testemunha identificando o líder petista em um cartaz de procurados.
A ditadura não abriu inquérito, a partir de prova tão frágil, mesmo
José Dirceu sendo um homem marcado para morrer, mas o escrevinhador
mandou bala. Não foi capaz, ao menos, de entrevistar um suposto
sobrevivente daquela operação, José Carlos Giannini, apesar de citá-lo.
Um biógrafo de verdade, como Mário Magalhães, ao escrever sobre Carlos
Marighella, comparou três fontes sobre cada episódio, no mínimo, antes
de cravá-lo como verdadeiro. Não é à toa que levou dez anos para
concluir sua obra sobre o comandante guerrilheiro. Esse método
definitivamente não é o do jornalista de "Veja". Além do recorta-e-cola
de matérias antigas e textos policiais, apostou muitas de suas fichas em
boatos sem origem indicada e em depoimentos de conhecidos desafetos do
biografado. A ideia do contraditório e da acareação lhe é totalmente
estranha.
Inúmeras das notas que chancelam determinadas informações apontam para
"um assessor", "um jornalista" ou "uma testemunha". Sem nome ou
sobrenome. Seria trágico se não fosse cômico. Um dos depoentes que dá a
cara é o ex-petista Paulo de Tarso Venceslau. Amigo de Dirceu no
movimento estudantil, depois dos anos 90 virou inimigo figadal. Mas seus
relatos são tratados pelo autor como verdades cristalinas, sem qualquer
contraponto. O resultado seria o mesmo se uma biografia de Fidel Castro
fosse escrita principalmente a partir de entrevistas com cubanos da
Florida ou se a história de Trotsky fosse contada pela direção soviética
dos anos 30 e 40.
O pastiche se supera quando especula que havia suspeita sobre Dirceu ter
sido o delator que teria levado às quedas e ao extermínio do Molipo,
organização armada à qual pertencia. O próprio Cabral, no entanto, cita
que os contemporâneos do biografado, alguns também sobreviventes do
massacre, negam essa versão e prestam-lhe seguidas homenagens e
manifestações de solidariedade. O autor se baseia em depoimento de um
ex-coronel das Forças Armadas, envolvido em atividades repressivas, que
não é corroborado por mais ninguém ou por qualquer documento. Pura
patifaria.
Não consegue, a propósito, sequer dar ares de seriedade a suas
invencionices. Profundamente ignorante sobre a história do país e da
esquerda, confunde incontáveis dados, datas e personagens, além de se
atrapalhar e cair em seguidas contradições. Paulo Vanucchi, citemos um
caso, é apresentado como militante da ALN em um canto e do MEP n'outro,
algo estapafúrdio, misturando organizações sem qualquer identidade entre
si.
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