Em crise prolongada desde 2010, quando a recusa de criar estímulos ao
crescimento jogou o Velho Mundo em recessão - quebrando os elos mais
fracos, como Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha -, a Europa acaba de
anunciar duas notícias.
A primeira, é que o desemprego subiu mais um pouco. A média, agora, é
de 12,2%, contra 12,1% apenas um mês antes. Entre os jovens, o
desemprego passou de 50% na Espanha e de 60% na Grécia.
A segunda notícia é que nada vai ser feito para diminuir o desemprego e
enfrentar a recessão. A alegação é que a inflação na zona do euro
subiu de 1,2% para 1,4%.
Em seu abismo, desnecessário, a Europa dá uma nova demonstração de que
não há limite para a crueldade política e que a expressão “fundo do
poço” é uma imagem retórica – na vida real, não há fronteira para a
decadência econômica nem para o retrocesso social. É sempre possível
piorar um pouco mais e até muito mais.
O limite é definido, na prática, pela capacidade de resistência dos
trabalhadores e das camadas empobrecidas da sociedade e pela competência
de seus líderes para impor um outro ponto de vista.
Nenhum governo europeu resistiu ao teste das urnas até agora. Todos
foram derrubados pelo eleitorado. Mas nenhum governo novo teve forças –
alguns nem sequer tentaram ampliar a musculatura – para realizar
mudanças que a população esperava. A maioria abandonou qualquer
compromisso assim que os votos foram contados.
Seu desgaste foi tão simples e rápido como a derrota de seus adversários.
Mesmo os anti-políticos italianos, que despertaram tanta sociologia
interesseira ao impedir a vitória da centro-esquerda, já enfrentam
sinais de velhice precoce.
O saldo é que a Europa assiste hoje à emergência – previsível – de movimentos fascistas.
Esta é uma lição que o Velho Continente, outrora tão rico e civilizado,
utopia de tantos estudiosos e viajantes de tantas ideologias, tem a
oferecer ao mundo.
Acredite: o Banco Central Europeu continua evitando qualquer medida
efetiva de estimulo à economia – nem as soluções moderadas e nem sempre
coerentes de Barack Obama – que poderiam dar um alívio, temporário,
parcial, a uma situação de tragédia.
Nem a Alemanha, que já foi vista como a fortaleza do pensamento
conservador, consegue ficar longe da tormenta. Todos os dados econômicos
estão em queda, o que ajuda a explicar o crescimento de protestos até
mesmo naquele país.
O atual retrocesso europeu é muito mais grave e preocupante do que se
poderia pensar. O Velho Mundo já passou por outras experiências
recessivas. Mas elas tiveram curta duração e permitiram retomadas, ainda
que temporárias. Agora não. O desmanche econômico virou um programa,
uma meta. Ninguém ousa dizer quando poderá terminar.
Isso porque ninguém ousa imaginar como estará a civilização europeia quando isso acontecer.
A destruição de riquezas e o empobrecimento da população cumprem a
finalidade de realizar, pelo desemprego, pela falta de futuro, aquilo
que outros projetos conservadores não foram capazes de conduzir: a
destruição do Estado de Bem-Estar Social, a mais civilizada experiência
que o capitalismo se permitiu em séculos de história.
Este é o processo.
A reorganização conservadora foi produzida por economistas instalados no comando do Banco Central Europeu.
Teve início fora da Eurozona, a partir da vitória de James Cameron nas
eleições britânicas, que inaugurou um programa de cortes de estímulos e
de políticas sociais que os trabalhistas haviam colocado de pé.
A partir de 2011, o Banco Central Europeu começou a elevar as taxas de
juros, levando os estados mais pobres à falência. Num esforço que só
contribuiu para esconder as responsabilidades reais, os pobres passaram a
ser responsabilizados pela própria pobreza, esperteza ideológica que
deixou de fazer sentido depois que a crise saiu da Grécia e de Portugal
para se instalar na França, na Itália e na Holanda.
(Fora da Eurozona, nem a Suécia escapou, como se sabe. Seriam preguiçosos nossos calvinistas nórdicos?)
Qual foi o slogan dessa mudança de curso? Paul Krugman recorda: a
obsessão com a austeridade, aplicada a ferro e fogo ainda que a
“economia da Eurozona se encontrasse em estado de profunda depressão e
sem nenhuma ameaça inflacionária convincente”.
Outros economistas, como Martin Wolf, principal analista do Financial
Times, têm uma visão crítica semelhante. Em determinado momento da
crise, a Economist também assumiu um ponto de vista parecida.
Este é o ponto.
No comando da austeridade europeia, em 2010, os dirigentes do BCE, com
seu presidente Jean-Claude Trichet à frente, diziam que uma ameaça de
depressão econômica era desprezível e o perigo a se evitar era a ameaça
de um surto inflacionário.
O risco, dizia Trichet, situava-se na faixa de uma inflação de 2%,
lembra Krguman, na página 201 do livro “!Acabemos ya com esta crisis!”
Exemplo de crueldade: após cinco anos de genocídio econômico, as
políticas de estimulo não podem ser aplicadas porque a inflação segue no
horizonte – numa taxa de 1,4%.
Essa situação demonstra que a austeridade não é uma opção conjuntural,
um conjunto de medidas que podem ser tomadas em qualquer lugar, conforme
a conjuntura.
É um projeto de longo curso, que se tornou possível a partir da União
Europeia, governo que tem a palavra final sobre a economia, por cima de
qualquer estado nacional, permitindo que a primeira ministra alemã,
Angela Merkel, imponha uma política por cima da vontade dos eleitores
vizinhos.
Muitas pessoas imaginam que foi a hiperinflação que levou Adolf Hitler
ao governo. Esta é a história que Ingmar Bergman contou no Ovo da
Serpente, um belo exercício de cinema – como esquecer a imagem de
cidadãos desolados carregando dinheiro em carrinhos? -, mas uma aula
menos competente de economia política.
A hiperinflação explodia no início dos anos 1920, quando o nazismo era
pouco mais do que um movimento exótico nas cervejarias de Munique.
Hitler chegou ao poder uma década depois. Neste período, ocorreu a
crise de 1929, aquela que todos dizem que foi a única maior que a de
2008.
Antes e depois, os partidos políticos alemães tiveram várias
oportunidades para mudar o curso da economia e oferecer saídas para a
situação. Nenhum teve luzes – outros não tiveram força política – para
oferecer a saída necessária.
Sendo bastante esquemático, mas nem por isso falso. A falta de respostas
adequadas ao emprego e ao colapso do crescimento criou um ambiente
social desesperado e insuportável, que permitiu o nazismo.
Nos Estados Unidos, evitou-se o pior graças ao New Deal de Franklin
Roosevelt, um programa de investimentos e estímulos continuados que se
prolongou por mais de uma década.
Uma interrupção desastrada ocorrida em 1937, quando os conservadores
convenceram Roosevelt de que a inflação tornara-se um risco, quase pôs
tudo a perder. Diziam que a crise de 1929 fora superada e que era
possível interromper as políticas de estimulo ao crescimento.
A austeridade voltou, a economia desabou e só foi se recuperar em plena Segunda Guerra Mundial.
Este é o ponto.
Do Blog COM TEXTO LIVRE.
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