11/06/2013
Socialista Morena
Quando eu trabalhei na Folha de S.Paulo pela primeira vez, em 1989, fui demitida porque confundi fisicamente o irmão de PC Farias, Luiz Romero, com o cientista político Bolívar Lamounier (parece bizarro, mas eles eram de fato parecidos). Na época, fiquei muito triste porque me pareceu uma bobagem diante dos furos que tinha dado em minha passagem-relâmpago por lá, e me senti como a namorada que é chutada no auge da paixão. Depois, refletindo, vi que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a meu ego de fedelha de 22 anos que já estava se achando, em pleno início de carreira, uma das maiores jornalistas do País. Também foi importante por me fazer perder rapidamente a ilusão de ser imprescindível e não apenas um parafuso na engrenagem deste grande negócio que se chama imprensa. Descobri cedo qual era meu lugar.
Quatro anos mais tarde, quando o jornal me convidou para voltar, eu era outra. Meu entusiasmo e a vontade de fazer reportagens interessantes continuavam intactos, mas havia morrido dentro de mim aquela sensação de “pertencer” a alguma empresa que contratasse meus serviços, de ser “querida” na casa ou de integrar uma “família”. Para mim, meu empregador passara a ser apenas meu empregador. E eu, uma mera operária da palavra, que estava por ali fazendo o meu melhor, mas que tinha claro que podia ser descartada a qualquer momento. Até porque, no Brasil, quanto mais você se torna experiente e se destaca numa empresa jornalística, e consequentemente ganha mais, não passa a ser o menos visado na hora dos “cortes”, e sim o oposto.
Esta visão pragmática não me tornou, entretanto, insensível ao descarte de vários contemporâneos que presenciei ao longo dos anos. Cada vez que um deles é chutado, ao contrário, sinto uma revolta ainda maior do que senti naquela primeira (e felizmente única) demissão. É como se fosse comigo. Sinto raiva quando lembro da vez que um amigo, excelente texto, foi dispensado, após 13 anos como repórter, e o primeiro que comentou foi: “Puxa, e olha que nunca dei um ‘erramos’”. Ou do que aconteceu recentemente com um fotógrafo querido, que comemorou pela manhã no Facebook os 20 anos de jornal e, à noite, voltou para publicar em seu mural que havia sido demitido. A empresa certamente nem se deu conta de que o fazia justo naquele dia. Na planilha de custos, aquele profissional impecável se resumia a alguns dígitos numa folha de pagamentos.
A esmagadora maioria dos jornalistas que conheci na minha já longa carreira são, como eu mesma, pé-rapados que ascenderam socialmente em virtude de seu trabalho, apurando, entrevistando, escrevendo, editando, fotografando. Infelizmente, com a ascensão social (somada ao convívio com o poder), os mal nascidos jornalistas se iludem de que passaram a integrar a elite, senão financeira, intelectual do País. É por isso que, como diz Mino Carta, “o Brasil é o único lugar onde jornalista trata patrão como colega”. Boa parte dos jornalistas acha mesmo que os patrões são colegas: colegas de classe. Patrões e jornalistas estariam lado a lado na elite. Não é à toa que tantos não se constrangem em escrever reportagens que representam uma classe a qual não pertencem de origem: se mimetizaram com ela.
É claro que jornalistas ficam abalados e tristes, sim, quando um companheiro de redação é demitido, mas não a ponto de fazer protestos ou de se organizar para questionar as “reestruturações”. E por que é assim? Eu acho que, no fundo, os jornalistas não reagem quando alguém vai parar no olho da rua porque, de certa maneira, se sentem solidários também com o dono, seu “colega”, na fria e corriqueira justificativa de que “era preciso cortar os custos”. Como se a empresa onde batem ponto diariamente fosse um pouco sua, ao mesmo tempo que sabem que serão os próximos. Aquela bendita demissão 24 anos atrás me livrou de sentir esta síndrome de Estocolmo.
Não sei o que vai acontecer, no futuro, com o jornalismo impresso, em crise no mundo – e mais em um país de pouca leitura como o nosso. Não acredito que as demissões que se tornarão cotidianas sejam capazes de provocar na categoria uma consciência de classe que nunca teve e que, a meu ver, nunca terá. A minha esperança é que a mesma internet que tem causado a fuga de leitores e os consecutivos cortes nos jornais proporcione um novo modelo de empresa de comunicação, alguma experiência individual, quiçá conjunta ou até cooperativa, em que possamos ser patrões de nós mesmos, para variar. As crises costumam ser boas para reconstruir. Oxalá nasça daí um jornalismo onde saibamos melhor nosso lugar na sociedade e a quem estamos servindo ao ganhar, com a notícia, o pão de cada dia.
Leia também:
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Danuza é o emblema da crise estrutural da “grande imprensa”
Passaralho: Editora Abril demite diretores de núcleo e até dez títulos devem ser fechados
O passaralho e o ficaralho
A revoada dos passalharos
Cynara Menezes em seu blog Quando eu trabalhei na Folha de S.Paulo pela primeira vez, em 1989, fui demitida porque confundi fisicamente o irmão de PC Farias, Luiz Romero, com o cientista político Bolívar Lamounier (parece bizarro, mas eles eram de fato parecidos). Na época, fiquei muito triste porque me pareceu uma bobagem diante dos furos que tinha dado em minha passagem-relâmpago por lá, e me senti como a namorada que é chutada no auge da paixão. Depois, refletindo, vi que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a meu ego de fedelha de 22 anos que já estava se achando, em pleno início de carreira, uma das maiores jornalistas do País. Também foi importante por me fazer perder rapidamente a ilusão de ser imprescindível e não apenas um parafuso na engrenagem deste grande negócio que se chama imprensa. Descobri cedo qual era meu lugar.
Quatro anos mais tarde, quando o jornal me convidou para voltar, eu era outra. Meu entusiasmo e a vontade de fazer reportagens interessantes continuavam intactos, mas havia morrido dentro de mim aquela sensação de “pertencer” a alguma empresa que contratasse meus serviços, de ser “querida” na casa ou de integrar uma “família”. Para mim, meu empregador passara a ser apenas meu empregador. E eu, uma mera operária da palavra, que estava por ali fazendo o meu melhor, mas que tinha claro que podia ser descartada a qualquer momento. Até porque, no Brasil, quanto mais você se torna experiente e se destaca numa empresa jornalística, e consequentemente ganha mais, não passa a ser o menos visado na hora dos “cortes”, e sim o oposto.
Esta visão pragmática não me tornou, entretanto, insensível ao descarte de vários contemporâneos que presenciei ao longo dos anos. Cada vez que um deles é chutado, ao contrário, sinto uma revolta ainda maior do que senti naquela primeira (e felizmente única) demissão. É como se fosse comigo. Sinto raiva quando lembro da vez que um amigo, excelente texto, foi dispensado, após 13 anos como repórter, e o primeiro que comentou foi: “Puxa, e olha que nunca dei um ‘erramos’”. Ou do que aconteceu recentemente com um fotógrafo querido, que comemorou pela manhã no Facebook os 20 anos de jornal e, à noite, voltou para publicar em seu mural que havia sido demitido. A empresa certamente nem se deu conta de que o fazia justo naquele dia. Na planilha de custos, aquele profissional impecável se resumia a alguns dígitos numa folha de pagamentos.
A esmagadora maioria dos jornalistas que conheci na minha já longa carreira são, como eu mesma, pé-rapados que ascenderam socialmente em virtude de seu trabalho, apurando, entrevistando, escrevendo, editando, fotografando. Infelizmente, com a ascensão social (somada ao convívio com o poder), os mal nascidos jornalistas se iludem de que passaram a integrar a elite, senão financeira, intelectual do País. É por isso que, como diz Mino Carta, “o Brasil é o único lugar onde jornalista trata patrão como colega”. Boa parte dos jornalistas acha mesmo que os patrões são colegas: colegas de classe. Patrões e jornalistas estariam lado a lado na elite. Não é à toa que tantos não se constrangem em escrever reportagens que representam uma classe a qual não pertencem de origem: se mimetizaram com ela.
É claro que jornalistas ficam abalados e tristes, sim, quando um companheiro de redação é demitido, mas não a ponto de fazer protestos ou de se organizar para questionar as “reestruturações”. E por que é assim? Eu acho que, no fundo, os jornalistas não reagem quando alguém vai parar no olho da rua porque, de certa maneira, se sentem solidários também com o dono, seu “colega”, na fria e corriqueira justificativa de que “era preciso cortar os custos”. Como se a empresa onde batem ponto diariamente fosse um pouco sua, ao mesmo tempo que sabem que serão os próximos. Aquela bendita demissão 24 anos atrás me livrou de sentir esta síndrome de Estocolmo.
Não sei o que vai acontecer, no futuro, com o jornalismo impresso, em crise no mundo – e mais em um país de pouca leitura como o nosso. Não acredito que as demissões que se tornarão cotidianas sejam capazes de provocar na categoria uma consciência de classe que nunca teve e que, a meu ver, nunca terá. A minha esperança é que a mesma internet que tem causado a fuga de leitores e os consecutivos cortes nos jornais proporcione um novo modelo de empresa de comunicação, alguma experiência individual, quiçá conjunta ou até cooperativa, em que possamos ser patrões de nós mesmos, para variar. As crises costumam ser boas para reconstruir. Oxalá nasça daí um jornalismo onde saibamos melhor nosso lugar na sociedade e a quem estamos servindo ao ganhar, com a notícia, o pão de cada dia.
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