Vida de cinema
Luis Fernando Verissimo
Luis Fernando Verissimo
Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em
alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre
as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na
cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu. O choque de punho
contra rosto fazia estrago nos rostos - ou não fazia: eram comuns lutas
em que os brigões quase se matavam a murros e terminavam sem nenhuma
marca nos rostos - mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal
informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o
alvo sofre tanto quanto o alvo.
No cinema de antigamente você já sabia: quando alguém tossia, era porque
iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso
na garganta ou uma gripe passageira - era morte certa. Quando um casal
se beijava apaixonadamente e em seguida desaparecia da tela era sinal de
que tinha se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida.
Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal
desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês. Pode-se mesmo
dizer que o começo da mudança do cinema americano se deu na primeira
vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que ele
fazia deitado. Depois desse momento revolucionário, não demoraria até
aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegamos ao cinema
americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é "fucking".
Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas
pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em
casa. E sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante,
atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar
que o garçom trouxesse a nota. Seria uma vida mais simples, a cores ou
em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que
cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis; e quando dançássemos
com nossas namoradas seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e
não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.
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