A série de reportagens pintando um cenário de apocalipse na economia
brasileira, que marca as edições recentes dos principais jornais
genéricos de circulação nacional, traz como pano de fundo uma tese
perigosa: a de que a plena oferta de empregos seria uma das principais
causas de aumento dos preços no Brasil.
Observe-se que a imprensa brasileira não questiona se estamos de fato
imersos no perigoso jogo inflacionário, embora os aumentos de preços
tenham se mostrado pontuais e randômicos, não lineares, o que indica a
ocorrência de causas múltiplas e não necessariamente um processo
consistente de inflação.
Há apenas dois meses, os jornais e os noticiários da televisão e do
rádio martelavam a tese da inflação de alimentos; depois, com o tomate
voltando ao molho com preços 75% inferiores, a imprensa passou a
ressaltar o custo de produtos eletrônicos, depois das viagens aéreas e
agora o vilão é o setor de serviços.
Nesse período, artigos e reportagens tentam impor a seguinte teoria: se
o crescimento econômico é insatisfatório, o pleno emprego torna-se
fator de inflação porque a disputa por bons funcionários aumenta o custo
das empresas, o que acaba se refletindo no preço final dos produtos.
Por outro lado, dizem esses teóricos, o crescimento da renda dos
trabalhadores aumenta a procura, porque há mais gente com dinheiro para
as compras e, apesar do aumento recente dos juros, a oferta de crédito
segue em alta.
Os defensores dessa tese consideram que, para fazer a economia crescer
sem inflação, é preciso manter um exército de trabalhadores sem renda,
ou dispostos a ganhar pouco, para que os preços se mantenham estáveis e o
Produto Interno Bruto possa crescer a níveis chineses. Para eles, a
boa política econômica é aquela que preserva os “bons fundamentos da
economia”, e não aquela que produz bem-estar para a maior parcela da
população.
O pensador francês Edgar Morin já observou que “a economia é, ao mesmo
tempo, a ciência humana mais avançada matematicamente e a mais atrasada
humanamente”. No caso do Brasil, os especialistas mais apreciados pela
imprensa são os que se apegam a fundamentos que se justificam mais por
ideologia do que por evidências científicas, e se recusam a considerar a
nova complexidade da sociedade brasileira.
Esse novo contexto social se baseia no ingresso de uma nova classe de
renda no mercado, que permite a milhares de produtos e serviços
alcançarem uma escala nunca antes vista. Durante alguns anos, esses
novos protagonistas irão realizar alguns sonhos de consumo que acalentam
desde a infância, o que certamente produz desequilíbrios nas cestas do
mercado.
Que dó, que dó!
Foi assim com biscoitos recheados e iogurte, nos primeiros anos do
Plano Real; foi assim com os calçados esportivos e vestuário até 2005, o
que estimulou a maior frequência a shopping centers, que proliferaram
por todo o país; depois vieram os carros populares, as viagens aéreas,
os cruzeiros marítimos, os computadores, e, mais recentemente a TV
digital, tablets e smartphones.
O enigma que os economistas devem decifrar é: quais setores do sistema
produtivo precisam de uma injeção de produtividade para atender essa
demanda sem aumento abusivo de preços.
O pleno emprego e o aumento da renda dos trabalhadores, ocorrendo em
curto prazo num contexto de desigualdades históricas, baixa renda e
trabalho informal, tendem a produzir distorções de preços, em parte,
porque a economia estava organizada para os padrões estáveis de uma
classe média tradicional e de pouca escala. De repente, essa classe
média, que nunca passou de 15% da população brasileira, tem a companhia
dos emergentes, que representam mais de 55% da população e formam um
novo país de 105 milhões de consumidores.
Mas jornais e revistas são feitos para a classe média tradicional, o que justifica a reportagem de capa da revista Época
desta semana. O texto é um primor de falácia jornalística: “O arrocho
da classe média”, diz o título da reportagem, com a chamada de capa em
tom de manifesto: “A conta sobrou pra você”.
Com uma série de exemplos de famílias com renda superior a R$ 8 mil mensais que agora precisam conter custos, Época
faz coro aos lamentos da dona de casa que se vê obrigada a reduzir
seus gastos com cabeleireiro, de R$ 800 por mês – e agora tem que fazer
hidratação facial em sua própria casa!
Também há o exemplo dos brasileiros de classes A/B que não aguentam
mais pagar o preço do vinho nos restaurantes, porque não dá para manter
esse hábito essencial e ao mesmo tempo custear o médico particular.
Eles são obrigados a reunir os amigos para beber em casa!
A reportagem nota, com espanto, que na última década a renda dos 10%
mais pobres subiu 91,2% acima da inflação, enquanto a dos 10% mais ricos
subiu apenas 16,6%.
Há outras referências, mas bastam esses exemplos do que a revista chama
de “calvário” da classe média tradicional. O texto termina com um
recado para seus leitores: “Eu era feliz e não sabia”.
A frase poderia ser bem outra: “É a distribuição de renda, cidadão”.
No Observatório da Imprensa
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