Guardo na memória alguns episódios do governo de Mário Covas, que
considero um político importante na história, que fazia política com
convicção e sangue nas veias. Líder mais autêntico da história do PSDB,
Covas foi governador de São Paulo e sofreu uma pressão muito forte por
conta do crescimento dos índices de violência.
Era uma São Paulo saudosa de Malufs e Fleurys, que acabara de viver o
Massacre do Carandiru, e cobrava medidas enérgicas contra o crime.
Havia uma forte pressão comparável à campanha em curso pela redução da
maioridade penal. As cobranças eram para que o governador se
manifestasse de forma dura contra os criminosos.
Covas respondeu o seguinte ao ser questionado pela imprensa: qualquer
manifestação do governador naquele contexto seria entendida pelo
policial, lá na ponta, como uma autorização para matar. O então
governador, que tinha toda a razão, “apanhou” bastante dos setores
conservadores e da mídia que o acusavam de “bundão”. Covas queria dizer
que qualquer sinal desse tipo vindo das autoridades é entendido pelos
policiais como uma ordem para usar todos os meios possíveis para
“resolver” a situação.
De lá para cá, muitas coisas mudaram. O PSDB já foi um partido
preocupado com os direitos humanos, que tinha ainda memória da
participação de seus dirigentes no processo de luta pela democracia na
década de 80. A postura do governador Geraldo Alckmin não lembra em
nada a postura responsável de Covas. As declarações do governador não só
legitimam como estimulam e liberam as ações de violência da Polícia.
Aqui vai uma das declarações do governador, o responsável político
pelas ações da PM: “Manifestação é legítima, natural. Outra coisa é
fazer depredação de patrimônio público, deixar um rastro de destruição
por onde passa, prejudicando o usuário do sistema”.
Esse discurso aparentemente democrático, de respeito às
manifestações, entra nos ouvidos dos policiais como uma orientação de
agir para impedir a realização desses protestos, ainda mais com o clima
criado por uma cobertura criminalizadora da mídia. A mensagem entendida
pelos policiais é a seguinte: essas manifestações são ilegítimas,
violentas e devem ser reprimidas com toda a força.
E foi justamente o que os soldados da PM fizeram na noite desta
quinta-feira. Prisões arbitrárias (de portadores de vinagre),
espancamentos covardes, agressões a jornalistas, tiros e bombas jogadas
em grupos de manifestantes que gritavam “sem violência, sem violência”.
A disposição da polícia era encerrar o ato o quanto antes,
independente da postura dos manifestantes. A intolerância de uma polícia
revanchista, que começou a fazer revistas e prisões de cidadãos na
saída do metrô antes do ato, teve como resposta a ampliação da
consciência dos manifestante de que a violência só joga água no moinho
de quem está contra os protestos.
A palavra de ordem “sem violência, sem violência” é uma demonstração
dos objetivos dos manifestantes, que repetindo em coro a frase
constrangem a polícia e envergonham uma minoria – aparentemente ainda
menor – disposta a acirrar os ânimos.
Um país com a democracia consolidada, diante dessa situação de
violência institucionalizada contra a população, faria um movimento pelo
impeachment do responsável pela ação da PM, o governador Geraldo
Alckmin. Se o prefeito Fernanda Haddad comete um erro político ao
sustentar a posição de manter o aumento da tarifa de ônibus, Alckmin
ameaça com a sua polícia a democracia e as liberdades civis ao impedir a
realização de uma manifestação que tem uma causa justa.
Diante disso, estamos enfrentando o AI-5 do governador Geraldo
Alckmin, que suspende várias garantias constitucionais e consolida uma
“linha dura” militar em pleno regime democrático. A generalização de
ações ilegais pelo Estado, especialmente as arbitrariedades do seu braço
armado portador do monopólio da for ça, obriga uma ação em defesa da
democracia que passa pelo afastamento imediato do responsável por essa
situação, o governador Alckmin, que não mostra condições de conduzir
esse processo.
Por outro lado, enquanto não der uma declaração firme contra a violência da polícia e a concreta ameaça à democracia, Haddad será considerado condescendente e pagará um preço político pela postura titubeante.
Por outro lado, enquanto não der uma declaração firme contra a violência da polícia e a concreta ameaça à democracia, Haddad será considerado condescendente e pagará um preço político pela postura titubeante.
Os atos dos jovens, que versam sobre temas de fundo relacionados à
questão urbana, ganham importância cada vez maior porque passaram a
tocar em uma ferida que marca o nosso país. No processo de
redemocratização da década de 80, setores da classe dominante evitaram
que se levasse a cabo o potencial das transformações defendidas pelo
movimento político que estava em luta.
Assim, não houve uma ruptura com o regime militar para a instauração
de uma democracia que levasse até as últimas consequências a
participação do povo na política e a destruição da estrutura de
repressão criada na ditadura. Por isso, a polícia que agora reprime
jovens manifestantes é a mesma que prendia, espancava e torturava
aqueles que lutavam contra a ditadura.
Com isso, a questão central não é mais o aumento de 20 centavos nas
tarifas (embora esse seja o problema motivador). Estão em jogo
os limites da democracia, cada vez mais estreitos ao não tolerarem a
realização de manifestações, a ocupação de espaços públicos e a
participação popular na política.
Cada vez mais jovens saem às ruas para protestar e os atos estão
ficando maiores. Cresce o sentimento de que é necessário lutar e, mesmo
com o clima de terror e medo criados pela violência da PM, esses jovens
se somam às manifestações de cara aberta e com um brilho especial no
olhar. Muitos vivem pela primeira vez, com seus 16 ou 17 anos, a
experiência de participar de protestos de massas.
Esse processo pode contribuir na construção de uma força social no
futuro, se for conduzido de forma responsável, estiver colado nos
anseios mais sinceros da sociedade e criar condições de converter o
ativismo de animados e corajosos jovens em uma organização política
capaz de enfrentar os problemas estruturais, que necessariamente fará a
ruptura adiada na década de 80 e, enfim, consolidará a democracia no
país.
Igor FelippeNo Viomundo
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