Muitos representantes políticos não entendem como manifestações como os
protestos contra o aumento das passagens em São Paulo não são conduzidos
por partidos, sindicatos e associações, mas sim em um processo
descentralizado. Há lideranças no movimento, mas elas estão lá para
organizar, não necessariamente controlar o que brotou da insatisfação
popular tanto à persistência de problemas existentes quanto aos tipos de
soluções que vêm sendo dadas pelos próprios representantes políticos a
esses problemas. Por conta disso, vi declarações de analistas que, beges
e em pânico, afirmavam que não sabiam como dialogar com uma situação
dessas.
Ótimo. Que fujam do comodismo estanque e reaprendam a se comunicar. Pois as demandas, agora, são outras.
Antes de mais nada, vale dizer que os políticos tradicionais têm
dificuldade em assimilar como movimentos utilizam ferramentas como
Twitter e Facebook. Acreditam que são apenas um espaço para marketing
pessoal ou, no máximo, um canal para fluir informação ou atingir o
eleitor. Há também os que crêem que redes sociais funcionam como
entidades em si e não como plataformas de construção política onde vozes
dissonantes ganham escala, pois não são mediadas pelos veículos
tradicionais de comunicação. Ou seja, onde você encontra o que não é
visto em outros lugares, por exemplo.
Essas tecnologias de comunicação não são ferramentas de descrição da
realidade, mas sim de construção e reconstrução desta. Quando a pessoa
está atuando através de uma dessas redes, não reporta simplesmente.
Inventa, articula, muda. Vive. Isso está mudando aos poucos a forma de
se fazer política e as formas de participação social. O poder concedido a
representantes, tanto em partidos, como em sindicados, associações,
entre outros espaços, tende a diminuir e a atuação direta das pessoas
com os desígnios da sua polis, consequentemente, aumentar.
Voltando às manifestações em si. Muitos desses analistas bravejam contra
o uso da força, representado pelo bloqueio de uma avenida, por exemplo.
Mas o uso dessa força que incomoda é um instrumento político legítimo. É
claro que devido à sua natureza, se utilizada, deve ser apenas em
circunstâncias extremas. Pode contribuir para alcançar um objetivo, mas
também gerar impactos negativos sobre a imagem de determinado grupo
junto à sociedade. É, contudo, uma alternativa, muitas vezes
desesperada, diante da incapacidade do poder público de agir diante do
desespero alheio. Ou, pior, quando o Estado é ele próprio agente de
desrespeito aos mais fundamentais direitos. Nesse caso, recorrer a quem?
Às divindades da mitologia cristã?
O diálogo e as vias legais devem ser a primeira opção e, se possível, a
única. Mas nem sempre o outro lado, hegemônico, está disposto a negociar
– principalmente se isso significar perda de regalias (note-se que não
falei de perda de direitos, mas sim de re-ga-li-as). Muitos diálogos
terminam em muros intransponíveis pelas vias legais. E, vale a pena
lembrar, muitas das leis que impõe desigualdades foram implantadas pelas
classe sociais mais abastadas da sociedade, através da ação de seus
representantes políticos em parlamentos.
Desigualdades que, sobrepostas e reafirmadas ao longo do tempo através
de instituições como igrejas, família, escolas, setores da mídia, enfim,
os instrumentos à mão, transformam exploração em tradição. O explorado
esquece a razão da exploração e acaba aceitando-a, mais ou menos na
linha do “Deus quis assim” ou “a vida é assim mesmo”. E, antes que eu me
esqueça, maldito seja o “homem cordial” brasileiro. Pessoa do
deixa-disso do para-com-isso, que não bate-boca, que não debate porque
lhe foi ensinado que isso é feio. Com isso, não evolui, nem ajuda a
evoluir.
Jovens ingleses desempregados, sem esperança e perspectivas, sob uma
longa recessão econômica e uma polícia despreparada para ligar com
protestos, iniciaram uma revolta e foram chamados de vândalos lá e aqui.
O estopim do protesto, os “20 centavos” deles, pouco importa. Pois não
era o estopim a razão da revolta, mas um acumulado de fatores que
giravam em torno de sua qualidade de vida. Na verdade, da falta dela.
Muita gente no Reino Unido não entendia porque eles faziam aquilo já
que, durante tanto tempo, aceitaram coisa pior em silêncio.
Nesse ponto, manifestações públicas que causem impacto urbano, como
congestionamentos, devem ser consideradas como legítima defesa e não
como violência gratuita. Da mesma forma que uma ocupação em praça
pública no Egito, que impeça o país de funcionar normalmente enquanto um
ditador não deixar o poder. Ou o bloqueio de rodovias que chegam a La
Paz, enquanto os direitos de populações tradicionais não forem
respeitados. E até mesmo a resistência contra o salve-se-quem-puder do
capitalismo global, atormentando a vida do mercado financeiro em Wall
Street, em Saint Paul ou na ruas de Roma.
Muitas vozes se levantam para reclamar da “violência” resultante dessas
ações, mas se calam diante de massacres, chacinas e genocídios que
ocorrem diariamente. Ou das pequenas violências do dia-a-dia, como ter
que espremido feito bagaço de laranja em um busão após um dia cheio de
trabalho ou ir acomodado, feito sardinha em óleo, voltando para casa de
metrô. Só quem nunca pegou transporte público pode pedir calma à
população mediante a passagens caras e serviço ruim.
“Ah, mas esses jovens que resolveram, de uma hora para outra, questionar
como a vida foi organizada antes deles nascerem são muito novos para
entender.” Não, não são não. Já perceberam o que significa ordem,
hierarquia e tradição e não gostaram. Até porque são valores de uma
civilização representada por fuzis, colheitadeiras, motosserras, terno e
paletó que, mais cedo ou mais tarde, vai ter que mudar. Isso não é o
mundo, nem a política, que muitos deles querem.
O paradigma do sistema político representativo está em grave crise por
não ter conseguido dar respostas satisfatórias à sociedade. Aos mais
jovens, sobretudo. Bem pelo contrário, apesar de ser uma importante
arena de discussão, ele não foi capaz de alterar o status quo. Apenas
lançou migalhas através de pequenas concessões, mantendo a estrutura da
mesma maneira e a população sob controle. O Estado continua servindo aos
interesses de alguns privilegiados.
A incapacidade do sistema político de gerar respostas satisfatórias
levou também ao fortalecimento da luta em outras frentes, além daquela
representada pelo capital-trabalho. A vanguarda dos progressistas foi
ocupada por grupos que discutem as liberdades individuais e a qualidade
de vida nas grandes cidades – da mobilidade urbana, passando pelas
demandas de direitos sexuais e reprodutivos ao poder de dispor do
próprio corpo.
Os mais velhos vêm isso como uma pauta que não altera em nada a
estrutura social. Bem, como já disse aqui, o problema entre a velha e a
nova “esquerda” (na falta de uma outra palavra de contestação ao status
quo usei essa, mas podem também chamar de “jujuba” ou “picanha” se não
gostarem de “esquerda”) está no contexto histórico em que seus atores
foram formados. Não adianta mostrar fatos novos ou uma nova luz para a
interpretação da realidade, há grupos que fecham e não abrem com padrões
paleozóicos de interpretação da realidade.
A meu ver a solução desse embate se dará com os mais antigos se
retirando com a idade para dar lugar aos mais novos, formados em uma
matriz diferente.
Protestos contra o aumento de passagens do transporte público; sobre
estações de metrô que têm sua localização alterada em benefícios de um
grupo social privilegiado; ocupações de reitorias por estudantes, de
prédios abandonados por sem-teto; manifestações pelo direito ao aborto,
pelo uso de substâncias consideradas como ilícitas e outras liberdades.
Todas têm um objetivo muito maior do que obter concessões de curto
prazo. Elas não servem apenas para garantir transporte público, tapar as
goteiras das salas de aula, destinar um prédio aos sem-teto ou ainda
conquistar direitos individuais. Os problemas enfrentados pelos
movimentos urbanos envolvidos nesses atos políticos não são pontuais,
mas sim decorrência de um modelo de desenvolvimento que enquanto explora
o trabalho, concentra a renda e favorece classes de abastados, deprecia
a coisa pública (quando ela não se encaixa em seus interesses) ou a
privatiza (quando ela se encaixa).
Como muitos dizem, a luta não é por “20 centavos”. É por dignidade.
As ações são, sim, uma disputa de poder feita simultaneamente em âmbito
local e global que, no horizonte histórico, poderá resultar na
manutenção da pilhagem econômica, social e cultural da grande maioria da
sociedade ou levar à implantação de um novo modelo – mais humano, livre
e democrático.
A história mostra que apesar da esquerda ter capacidade de influenciar a
realidade no país, ela não foi capaz de transformá-la. E a menos que
novas respostas se imponham para romper com a estrutura atual,
continuaremos vendo fracassos se repetirem. A reconquista do espaço
público traz uma lufada de esperança para a busca de respostas. Você,
que reclama dessa molecada, deveria levantar e aplaudir de pé. Pois
talvez essa nova geração, auxiliada pela tecnologia, faça a diferença na
forma que os que vieram antes ainda não conseguiram fazer.
No Blog do Sakamoto
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