segunda-feira, 10 de junho de 2013

O rendez-vous de madame Devaux


Como uma discreta e sofisticada cafetina francesa amealhou um patrimônio milionário, entretendo políticos e empresários poderosos nos anos 1950
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A década de 1950 é chamada de Anos Dourados no Brasil porque, entre outros motivos, foi próspera para negócios e rica em experimentações comportamentais. A francesa Alice Devaux reunia em seu peculiar trabalho um pouco de cada uma dessas características e ganhava muito dinheiro. Ela era cafetina de luxo e seu diferencial não era o charmoso sotaque francês, já que várias conterrâneas tinham a mesma profissão no País, mas o fato de saber guardar segredos. E isso valia ouro, além de pedras preciosas, apartamentos, carros, etc. Sua clientela pagava caro por momentos de sexo com prostitutas em sigilo total. “Passavam por aqui deputados, senadores, empresários e me lembro também de um delegado de polícia. Mas não me peça para citar nomes”, diz o aposentado Roberto Lanaro, 81 anos, que ainda reside em um apartamento no andar de baixo da cobertura de Alice, na avenida Beira-Mar, no centro do Rio de Janeiro. Com espetacular vista para o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Baía de Guanabara, o imóvel, no 12º. andar, era o ponto de encontro entre belas mulheres e homens ricos — e casados, na grande maioria.
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O apartamento cinematográfico, com vista para a
Baía de Guanabara (topo), onde Alice (acima) recebia belas
mulheres e homens ricos. Abaixo, a ex-tutora Ely Guimarães Pinto
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Discrição, sobriedade, elegância e até certa erudição também eram trunfos de Madame Devaux. “Ela era muito elegante e educada, porém, praticamente não falava com os vizinhos”, lembra Lanaro. O silêncio e a agilidade para apagar pistas comprometedoras eram essenciais à rede de rendez-vous que envolvia vários outros apartamentos que ela emprestava aos clientes para encontros românticos ou esbórnia. A deslumbrante cobertura linear de 250 metros quadrados era mais usada para reuniões, festas e happy hours. Apesar da metragem, o imóvel tem apenas dois quartos. O espaço privilegiado é da sala, com piso de granito preto Tijuca — que não existe mais no Brasil porque a extração está suspensa — e do terraço panorâmico. Ali, homens importantes e influentes eram apresentados uns aos outros e, algumas doses de uísques depois, escolhiam uma garota de programa, chamadas de prostitutas na época. Alice também administrava encontros de amantes antigos ali.
Chama a atenção uma suíte que pertence ao imóvel, mas é totalmente independente, disfarçada. Sua entrada é pelo corredor, bem perto dos belíssimos elevadores de madeira. Há suspeitas de que o estratégico quarto era usado para encontros sexuais rápidos. A cozinha era pequena, ao estilo do arquiteto francês Le Corbusier (1887-1965), com a funcionalidade típica de uma cabine de avião: prateleiras e armários geometricamente desenhados para circundar uma pessoa. Alice reservou uma espaçosa suíte para si própria, com direito a despertar com vista para o Pão de Açúcar. Um antigo inquilino de um de seus imóveis teria dito que a cafetina mantinha fieis camareiras treinadas em arrumação de luxo, equivalente a hotéis cinco estrelas. Vale lembrar que não existiam motéis naquele tempo.
“Ela tinha caixas e mais caixas de joias valiosíssimas. Colares, brincos, anéis, broches feitos de ouro, brilhantes e pedras preciosas. Foram leiloadas em meados de 1980 por ordem de um juiz, num hotel de Copacabana. Quem arrematou não faz ideia que pertenceram a uma cafetina”, revela à ISTOÉ a ex-administradora dos bens de Alice e também companheira dos últimos anos de vida, Ely Maria Cazadio Guimarães Pinto, 76 anos. “Tudo indica que a cobertura da Beira Mar era uma espécie de sede e, os apartamentos, filiais. Encontrei lá muito material para decoração, objetos dourados, finos. Acredito que eram usados para dar maior luxo aos imóveis”, afirma Ely. Embora a curadora tenha convivido com Alice até a morte, ela garante nunca ter ouvido confissões ou mesmo a admissão de que tinha sido cafetina.
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PATRIMÔNIO
Terreno em condomínio na Gávea, avaliado em R$ 5 milhões,
e prédio de salas comerciais, no centro
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Nascida em Paris, em 1903, a francesa desembarcou no Rio em 1925, aos 21 anos, tendo se naturalizado brasileira em 1951. Morreu em 1989, sozinha em uma clínica geriátrica, após anos de luta contra o Mal de Alzheimer. Apenas três pessoas acompanharam seu enterro: Ely, o marido dela e uma assistente do Tribunal de Justiça. “Aparentemente, não tinha parentes. Todos os familiares morreram na Primeira Guerra Mundial”, explica a ex-curadora. Mas sua história não acabou com a morte. Madame Devaux deixou um patrimônio de 16 imóveis, sem herdeiros. Finalmente, o espólio irá a leilão em meados de julho, com renda revertida para a Prefeitura, como manda a lei. Sua fortuna também incluía ações da extinta Companhia Luz Steárica e da empresa Controle Industrial e Financeiro S/A, onde foi sócia-diretora. Esses investimentos, entre outros, viraram pó com as mudanças de moedas brasileiras e o fim das empresas. Como executiva, ela se destacou em uma reunião de conselho deliberativo, realizada em 1941, conforme consta de ata publicada no Diário Oficial da União. A francesa administrava sua rede de rendez-vous como se fosse uma empresa comum. Com firmeza e objetivo de lucro. Afinal, tudo era negócio mesmo.
A cobertura, hoje repleta de problemas estruturais devido à falta de conservação, deverá render algo em torno de R$ 1 milhão. O bem mais valioso é o terreno de quatro mil metros quadrados na Gávea, bairro nobre da zona Sul carioca, vizinho de figuras como o arquiteto Hélio Pellegrino, o neurocirurgião Paulo Niemeyer e o maestro Isaac Karabchevsk. Avaliado em pelo menos R$ 5 milhões, foi o último endereço de Alice antes de ser transferida para a clínica geriátrica. “Para a prefeitura, não faz sentido gastar dinheiro público para reformar um imóvel e alugá-lo. Esperamos conseguir o máximo possível por apartamentos e salas comerciais, que estão, em sua maioria, no Centro, uma região que sofreu grande valorização nos últimos anos”, afirma o superintendente de Patrimônio Imobiliário da prefeitura, Fabrício Tanure, que avalia em pelo menos R$ 10 milhões todo o espólio da francesa. Especialistas do ramo imobiliário, entretanto, calculam que este valor pode dobrar.
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Mas por que Alice e outras cafetinas francesas faziam tanto sucesso entre os poderosos? O historiador carioca Milton Teixeira diz que a preferência dos ricaços brasileiros por moças dessa nacionalidade se deve à fama que elas ganharam de boas amantes desde o período que a corte portuguesa morou na cidade, na década de 1810. Oriundas de um país onde a emancipação da mulher foi mais rápida, elas conseguiram bons empregos no comércio, mas dinheiro alto vinha mesmo dos bordéis. “O próprio imperador Dom Pedro I teve duas amantes francesas. Até hoje usamos expressões do idioma francês trazidas por elas”, afirma o historiador.
Michel Alecrim
Colaborou Eliane Lobato 
No IstoÉ

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