Como uma discreta e sofisticada
cafetina francesa amealhou um patrimônio milionário, entretendo
políticos e empresários poderosos nos anos 1950
A década de 1950 é chamada de Anos Dourados no Brasil porque, entre
outros motivos, foi próspera para negócios e rica em experimentações
comportamentais. A francesa Alice Devaux reunia em seu peculiar trabalho
um pouco de cada uma dessas características e ganhava muito dinheiro.
Ela era cafetina de luxo e seu diferencial não era o charmoso sotaque
francês, já que várias conterrâneas tinham a mesma profissão no País,
mas o fato de saber guardar segredos. E isso valia ouro, além de pedras
preciosas, apartamentos, carros, etc. Sua clientela pagava caro por
momentos de sexo com prostitutas em sigilo total. “Passavam por aqui
deputados, senadores, empresários e me lembro também de um delegado de
polícia. Mas não me peça para citar nomes”, diz o aposentado Roberto
Lanaro, 81 anos, que ainda reside em um apartamento no andar de baixo da
cobertura de Alice, na avenida Beira-Mar, no centro do Rio de Janeiro.
Com espetacular vista para o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Baía de
Guanabara, o imóvel, no 12º. andar, era o ponto de encontro entre belas
mulheres e homens ricos — e casados, na grande maioria.
O apartamento cinematográfico, com vista para a
Baía de Guanabara (topo), onde Alice (acima) recebia belas
mulheres e homens ricos. Abaixo, a ex-tutora Ely Guimarães Pinto
Discrição, sobriedade, elegância e até certa erudição também eram
trunfos de Madame Devaux. “Ela era muito elegante e educada, porém,
praticamente não falava com os vizinhos”, lembra Lanaro. O silêncio e a
agilidade para apagar pistas comprometedoras eram essenciais à rede de
rendez-vous que envolvia vários outros apartamentos que ela emprestava
aos clientes para encontros românticos ou esbórnia. A deslumbrante
cobertura linear de 250 metros quadrados era mais usada para reuniões,
festas e happy hours. Apesar da metragem, o imóvel tem apenas dois
quartos. O espaço privilegiado é da sala, com piso de granito preto
Tijuca — que não existe mais no Brasil porque a extração está suspensa —
e do terraço panorâmico. Ali, homens importantes e influentes eram
apresentados uns aos outros e, algumas doses de uísques depois,
escolhiam uma garota de programa, chamadas de prostitutas na época.
Alice também administrava encontros de amantes antigos ali.
Chama a atenção uma suíte que pertence ao imóvel, mas é totalmente
independente, disfarçada. Sua entrada é pelo corredor, bem perto dos
belíssimos elevadores de madeira. Há suspeitas de que o estratégico
quarto era usado para encontros sexuais rápidos. A cozinha era pequena,
ao estilo do arquiteto francês Le Corbusier (1887-1965), com a
funcionalidade típica de uma cabine de avião: prateleiras e armários
geometricamente desenhados para circundar uma pessoa. Alice reservou uma
espaçosa suíte para si própria, com direito a despertar com vista para
o Pão de Açúcar. Um antigo inquilino de um de seus imóveis teria dito
que a cafetina mantinha fieis camareiras treinadas em arrumação de
luxo, equivalente a hotéis cinco estrelas. Vale lembrar que não
existiam motéis naquele tempo.
“Ela tinha caixas e mais caixas de joias valiosíssimas. Colares,
brincos, anéis, broches feitos de ouro, brilhantes e pedras preciosas.
Foram leiloadas em meados de 1980 por ordem de um juiz, num hotel de
Copacabana. Quem arrematou não faz ideia que pertenceram a uma
cafetina”, revela à ISTOÉ a ex-administradora dos bens de Alice e também
companheira dos últimos anos de vida, Ely Maria Cazadio Guimarães
Pinto, 76 anos. “Tudo indica que a cobertura da Beira Mar era uma
espécie de sede e, os apartamentos, filiais. Encontrei lá muito material
para decoração, objetos dourados, finos. Acredito que eram usados para
dar maior luxo aos imóveis”, afirma Ely. Embora a curadora tenha
convivido com Alice até a morte, ela garante nunca ter ouvido confissões
ou mesmo a admissão de que tinha sido cafetina.
PATRIMÔNIO
Terreno em condomínio na Gávea, avaliado em R$ 5 milhões,
e prédio de salas comerciais, no centro
Nascida em Paris, em 1903, a francesa desembarcou no Rio em 1925, aos
21 anos, tendo se naturalizado brasileira em 1951. Morreu em 1989,
sozinha em uma clínica geriátrica, após anos de luta contra o Mal de
Alzheimer. Apenas três pessoas acompanharam seu enterro: Ely, o marido
dela e uma assistente do Tribunal de Justiça. “Aparentemente, não tinha
parentes. Todos os familiares morreram na Primeira Guerra Mundial”,
explica a ex-curadora. Mas sua história não acabou com a morte. Madame
Devaux deixou um patrimônio de 16 imóveis, sem herdeiros. Finalmente, o
espólio irá a leilão em meados de julho, com renda revertida para a
Prefeitura, como manda a lei. Sua fortuna também incluía ações da
extinta Companhia Luz Steárica e da empresa Controle Industrial e
Financeiro S/A, onde foi sócia-diretora. Esses investimentos, entre
outros, viraram pó com as mudanças de moedas brasileiras e o fim das
empresas. Como executiva, ela se destacou em uma reunião de conselho
deliberativo, realizada em 1941, conforme consta de ata publicada no
Diário Oficial da União. A francesa administrava sua rede de rendez-vous
como se fosse uma empresa comum. Com firmeza e objetivo de lucro.
Afinal, tudo era negócio mesmo.
A cobertura, hoje repleta de problemas estruturais devido à falta de
conservação, deverá render algo em torno de R$ 1 milhão. O bem mais
valioso é o terreno de quatro mil metros quadrados na Gávea, bairro
nobre da zona Sul carioca, vizinho de figuras como o arquiteto Hélio
Pellegrino, o neurocirurgião Paulo Niemeyer e o maestro Isaac
Karabchevsk. Avaliado em pelo menos R$ 5 milhões, foi o último endereço
de Alice antes de ser transferida para a clínica geriátrica. “Para a
prefeitura, não faz sentido gastar dinheiro público para reformar um
imóvel e alugá-lo. Esperamos conseguir o máximo possível por
apartamentos e salas comerciais, que estão, em sua maioria, no Centro,
uma região que sofreu grande valorização nos últimos anos”, afirma o
superintendente de Patrimônio Imobiliário da prefeitura, Fabrício
Tanure, que avalia em pelo menos R$ 10 milhões todo o espólio da
francesa. Especialistas do ramo imobiliário, entretanto, calculam que
este valor pode dobrar.
Mas por que Alice e outras cafetinas francesas faziam tanto sucesso
entre os poderosos? O historiador carioca Milton Teixeira diz que a
preferência dos ricaços brasileiros por moças dessa nacionalidade se
deve à fama que elas ganharam de boas amantes desde o período que a
corte portuguesa morou na cidade, na década de 1810. Oriundas de um
país onde a emancipação da mulher foi mais rápida, elas conseguiram
bons empregos no comércio, mas dinheiro alto vinha mesmo dos bordéis.
“O próprio imperador Dom Pedro I teve duas amantes francesas. Até hoje
usamos expressões do idioma francês trazidas por elas”, afirma o
historiador.
Michel AlecrimColaborou Eliane Lobato
No IstoÉ
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