terça-feira, 15 de outubro de 2013

Banqueiros babam com disruptura de Marina


Marina  Silva sentou-se à direita da santíssima trindade dos mercados. Em amigável  périplo pela mídia, a ex-senadora se declara uma convicta defensora do sacrossanto  ‘tripé’. Que vem a ser uma  espécie de enforcador  à distância. Sendo o pescoço, a sociedade. E os mercados, a mão que controla a correia.
A coleira dentada  permite que o dinheiro grosso submeta  governos, partidos  e demais instâncias sociais a um comando de desempenho monitorado por três variáveis.
A saber:
I)  regime de metas de inflação, ancorado no chicote dos  juros ‘teatrais’, se necessários, assevera Marina em flerte com o ‘choque’ monetarista;
II) câmbio livre, leia-se, nenhum aroma de controle de capitais; vivemos, afinal,  em um período de pouca volatilidade e incerteza global...  e
III) o superávit  ‘cheio’ – o nome honesto disso, convenhamos,  é arrocho fiscal: corte de investimentos públicos estratégicos  para garantir  o prato de lentilhas  dos rentistas.
Marina descobriu que quando abre a boca  encanta  os banqueiros. Mas começa a ter dificuldade  com o vocabulário.
Como exprimir o que se propõe a fazer no Brasil sem colidir com as boas intenções de seus apoiadores?
Ao  jornal Valor Econômico, que lhe ofereceu uma página nesta 2ª feira, a parceira de Eduardo Campos defende uma ‘disruptura’. Que diabo ela quer dizer  com isso?

Marina quer dizer a mesma coisa que o Globo disse sábado, em manchete garrafal: ‘PSDB melhorou serviços e PT reduziu desigualdade’. Ou seja, o passado passou. Cada um fez o que pode.
Agora é olhar para frente, juntar o que presta e descartar o resto. O nome  da travessia, ensaia o Globo, é Campos/Marina. Ou ‘disruptura’, arrisca a sedutora ex-senadora.
Vamos abstrair do interior da palavra ‘serviços’ detalhes que agridem a apaziguadora manchete  do Globo. Por exemplo,  o ‘apagão’ de 2001. Ao custo de 2% do PIB, ele promoveria um corte de  20% do serviço de energia elétrica  oferecido aos brasileiros. Que, todavia, pagaram pelo serviço não prestado.
Outra dissonância entre a história vivida pela população e o jornalismo Globo: a área sofrível do saneamento  básico. No ano passado, o Brasil aplicou  R$ 8,3 bi na expansão desse serviço . É pouco. A média necessária para universalizar  o acesso em 20 anos  seria da ordem de R$ 20 bi ao ano.
Ainda assim representa  dez vezes mais o valor destinado  há uma década, quando, segundo o Globo, tivemos  um ciclo de fastígio nos serviços.
Marina passa ao largo dessas miudezas.
“Como eu e Eduardo reconhecemos tanto as coisas boas do governo do PT e do PSDB, talvez sejamos a esperança de provocar uma "disruptura".
Ei-la, nesta  2ª feira, em bate bola afinado com a  manchete do domingo. Nas palavras da ex-senadora, trata-se agora de buscar  ‘uma  agenda que não mude porque mudou o governo’. Escavar  um fosso entre a representação política da sociedade  e o poder efetivo sobre o seu destino, é tudo o que as plutocracias almejam, urbi et orbi.
Se alguém  trata  isso com leveza e sedução, como resistir?
‘Impressionante’; ‘cativante’, disseram clientes  endinheirados do Credit  Suisse, banco  que patrocinou um encontro a portas-fechadas  com a ex-ministra na 6ª feira.
Há notável coerência entre desdenhar dos partidos e entregar o destino da sociedade a uma lógica  que se avoca autossuficiente e autorregulável. Marina passeia por um Brasil plano.  Mas o mundo não é plano.  E o relevo econômico do Brasil inclui-se entre as encostas mais acidentadas pela ação secular de predadores, ora cativados pela  ex-ministra.
Os ouvidos para os quais as vozes de Marina, Campos e Aécio soam como música  – assim como soava a de Palocci, em 2003 -  sabem  que  drenar  R$ 223 bilhões  em juros de um organismo social marcado por carências latejantes  de serviços e infraestrutura não é sustentável.
O valor refere-se ao total das despesas com juros da dívida pública (nas três esferas da federação) pagos em 12 meses até outubro. Representa uns 5% do PIB. Mais de dez vezes o custo do Bolsa Família, programa que beneficias 14 milhões de famílias, 55 milhões de pessoas.
Ou quatro vezes o que supostamente custaria a implantação da tarifa zero no transporte coletivo das grandes cidades brasileiras. Ou ainda dezoito vezes mais o que o programa  ‘Mais Médicos’ deve investir até 2014, sendo: R$ 2,8 bilhões para construir 16 mil Unidades Básicas de Saúde e equipar 5 mil unidades; ademais de R$ 3,2 bilhões para obras em 818 hospitais e aquisição de equipamentos para outros  2,5 mil, além de R$ 1,4 bilhão para obras em 877 Unidades de Pronto Atendimento.
Repita-se: daria para fazer isso 18 vezes com o valor destinado ao rentismo em um ano.
Não serve de consolo dizer que no final do governo FHC  gastava-se quase 10% do PIB com juros. O investimento público direto da União em logística e  infraestrutura social era um traço. Agora oscila em torno de 1% (descontado o Minha Casa).
Muito distante do desejável para uma sociedade que atingiu o ponto de saturação na convivência com  serviços  insuficientes e de baixa qualidade. O ponto é: como Marina que supostamente herdou os votos dessa insatisfação, pretende lidar com assimetrias descomunais, apoiada na defesa algo deslumbrada,  tosca e jejuna, do ‘tripé’?
“Se o tripé ficou comprometido, é preciso restaurá-lo”, sentenciou quase blasé  aos clientes embasbacados do Credit Suisse. Ao abraçar a utopia neoliberal Marina aspira ser uma pluma imune ao atrito que contrapõe os interesses populares aos da elite brasileira. Exerce na verdade o surrado papel da bigorna histórica, sobre a qual amplos interesses são submetidos  aos golpes da marreta impiedosa do dinheiro.
Para isso está sendo cevada. Ao que parece, tomou gosto pela ração. E já ensaia comer sozinha.

Saul Leblon
No Carta Maior

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