Por que ‘especialistas’ insistem em se sentir ofendidos com um produto de nível tão baixo?
A novela não tem função social alguma além de delimitar o horário de
mandar o seu filho dormir. O conteúdo pode incluir os temas mais atuais
e pertinentes, mas seu alcance intelectual nunca ultrapassará a
capacidade mental de uma morsa. O máximo que se pode esperar de uma
novela nova é que não seja tão ruim quanto a anterior. A melhor delas
é, no máximo, tão boa quanto um seriado medíocre. O objetivo é que seja
tão simples que qualquer cérebro desprovido dos processos mentais mais
básicos consiga compreendê-la.
Peguemos ‘Amor à Vida’. Lá encontramos uma boa amostragem de assuntos
edificantes – a inseminação artificial, a adoção de criança por casal
gay, a filha autista, a jovem com câncer, o pai de família
desempregado. São temas pertinentes, sem dúvida, mas isso não faz da
novela melhor ou pior do que uma propaganda de plano de saúde. De que
adianta injetar algum propósito ético se o material continua ruim?
A ideia de que a novela tem uma função social fez surgir uma classe de
‘especialistas’ cuja principal atividade é se sentir ofendido com o que
vê na televisão. Esses especialistas não estão lá muito preocupados
com a qualidade da obra; preferem se limitar a interpretar a posição do
autor, questionar se o conteúdo é pertinente ou apontar para a fala de
um personagem que poderia ofender alguém.
Manifestações como essas, cheias de boas intenções, não me convencem de
que a sociedade está mais engajada, como me avisaram, mas de algo mais
assustador: a vontade que o povo tem de ver suas opiniões enfiadas na
cabeça dos outros através da boca de um personagem de novela.
A tropa moralista marcha, com tochas e foices, contra o que acabou de
sair da boca de um personagem de ficção. A dificuldade de separar
ficção da realidade é sinal de um problema psicológico sério.
Mês passado, a Acrimesp (Associação de Advogados Criminalistas do
Estado de São Paulo) mandou uma carta aberta à Globo reclamando da
personagem de Carol Castro em ‘Amor à Vida’ – que teria orientado um
cliente a mentir. Na mesma época, enfermeiros organizaram um
abaixo-assinado porque se sentiram ofendidos pela maneira com a qual os
profissionais estavam sendo mostrados na novela. Sem contar que até as
ex-chacretes mandaram uma dessas cartas para a Globo. Difícil é saber
se enfermeiros, advogados e ex-chacretes estão sendo denegridos pela
novela, como afirmam, ou por eles mesmos quando mandam uma carta aberta
contra a conduta de um personagem de ficção.
E o que choveu de reclamações nos primeiros episódios de ‘Amor à Vida’,
quando o personagem de Antônio Fagundes se recusou a fazer um aborto
de uma paciente! O pior é que poucas semanas depois, quem se revoltou
foi um grupo de cristãs; mas desta vez em repúdio a ‘Saramandaia’, que
teria dado uma mensagem clara de apoio ao aborto. Em menos de um mês a
Globo foi acusada de abortista e ultraconservadora.
A novela é um produto audiovisual democrático; é ruim para todo mundo e
dá espaço para todo mundo se sentir ofendido. O autor não escreve uma
obra, mas presta um serviço ou um desserviço dependendo se a sua
opinião bate com a dele. Novela no Brasil não passa disso, de uma
prestadora de serviços. Uma instituição pela qual se espera resolver os
problemas do país.
A maneira mais coerente para mostrar que um programa de televisão
desagrada é mudar de canal. Mas os especialistas continuam assistindo.
Insistem em se sentir ofendidos. Sentem prazer nisso.
Em lugar nenhum está escrito que somos obrigados a assistir à
televisão. São mais de 60 anos de novela. Será que já não deu tempo de
entender como elas funcionam? Por que ainda querem se surpreender
positivamente? Por que devotar tanto tempo se indignando com algo que
não é do seu real interesse? A opção de mudar de canal, segundo consta,
ainda é permitida.
Numa época em que nunca houve tanta opção de entretenimento, é fácil
entender por que cada vez menos pessoas assistem novela — e difícil
entender por tanta gente se sente ofendida por ela.
Guy Franco No DCM
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