Não enxergar o elo entre as ruas e o ciclo histórico costuma ser fatal às lideranças de uma época.
Acreditar que o elo, no caso dos recentes protestos em São Paulo, está
no aumento de 20 centavos sobre uma tarifa de transporte congelada desde
janeiro de 2011, é ingenuidade.
Supor que a ordenação entre uma coisa e outra poderá ser restabelecida à
base de cassetetes e pedradas é o passaporte para o desastre.
Desastre progressista, bem entendido.
A lógica conservadora nunca alimentou dúvidas existenciais ou políticas quanto a melhor forma de manter o caos nos eixos.
Esse é um apanágio do seu repertório histórico.
O colapso do trânsito, inclua-se nesse desmanche o custo e o tempo
despendidos nos deslocamentos, é apenas o termômetro mais evidente de um
metabolismo urbano comatoso.
Cerca de 1/3 dos paulistanos, aqueles mais pobres, residentes nas
periferias distantes, levam mais de uma, a até mais de duas horas no
trajeto da casa ao trabalho.
Os tempos indicados são referentes à ida; não consideram o gasto no retorno.
Os dados são de pesquisa recente do Ibope.
Não se produz uma irracionalidade desse calibre sem um acúmulo deliberado.
Estudos do Ipea reiteram a piora nas condições de transporte urbano das principais áreas metropolitanas do país desde 1992.
O Brasil tem a taxa de urbanização mais alta em uma América Latina que lidera o ranking mundial nesse indicador, diz a ONU.
O país concluiu a transição rural/urbana em três décadas, açoitado pela política de modernização conservadora do campo.
Isso se fez sob a chibata de uma ditadura militar .
E não poderia ter sido feito exceto assim.
A virulência do Estado ditatorial fez em um terço do tempo aquilo que as nações ricas levaram um século para realizar.
A coagulação da insensatez na atual ‘imobilidade urbana’ reflete o saldo de perdas e danos dessa marcha batida da história.
O crescimento populacional desordenado das grandes cidades, agudizado pelas referidas migrações é um dos alicerces da ruína.
Ancorada na omissão pública de décadas, a expansão irracional e especulativa da mancha urbana ganhou vida própria.
Com os desdobramentos logísticos sabidos: aumento das taxas de
deslocamento e motorização; explosão dos congestionamentos e do custo do
transporte.
Na vida da cidade e no bolso de cada cidadão.
Não é figura de retórica dizer que esses ingredientes acionam o pino de
cada bomba de gás lacrimogênio e faíscam o pavio de cada enfrentamento
irrefletido nas batalhas campais registradas na cidade de São Paulo em
menos de uma semana.
Repita-se: o conservadorismo tem certezas esféricas quanto a melhor
forma de lidar com a nitroglicerina social contida nas cápsulas de
concreto que ergueu no país nas últimas décadas.
Suas escolhas não podem ser as mesmas das forças progressistas.
O nivelamento regressivo acontecerá caso a inércia política ceda o comando dos acontecimentos à lógica da violência.
No caso dos protestos em São Paulo, a responsabilidade da autoridade municipal é superlativa.
Cabe-lhe reafirmar o divisor entre a gestão progressista de uma sociedade e a visão conservadora sobre os seus conflitos.
Carta Maior saudou a vitória de Fernando Haddad em 2012 por
entender, como entende, que ele representa o resgate do cimento da
democracia na reconstrução de São Paulo.
Mais que isso.
Por entender que a sorte de São Paulo sob a liderança da nova
administração marcará o destino da agenda progressista brasileira no
período em curso.
A maior metrópole latino-americana constitui um gigantesco laboratório de desafios e recursos.
Tem a escala necessária para gerar contracorrentes vigorosas, a ponto de
sacudir e renovar a agenda da esquerda brasileira, após mais de uma
década no comando do país.
A deriva em que se encontram os serviços e espaços públicos da cidade é obra meticulosa e secular de elites predadoras.
Ao longo de décadas, a Prefeitura consolidou-se aos olhos da população
como um anexo dessa lógica expropriatória, quando deveria funcionar como
um escudo do interesse coletivo.
Incapaz de se contrapor à tragédia estrutural que marca a luta pela vida
em São Paulo, tornou-se uma ferramenta irrelevante aos olhos da
cidadania.
A tragédia se completa com o descrédito da população em relação ao seu próprio peso na ordenação institucional da cidade.
Daí para acender uma espiral de enfrentamentos bastam 20 centavos de diferença na tarifa.
Sim, há outras nuances e interesses entrelaçados ao destaque
esquizofrênico com que a mídia convoca e, depois, alardeia o caos a cada
protesto.
Tais motivações são as mesmas que fizeram do tomate um astro olímpico na
modalidade ‘descontrole dos preços’, há menos de um mês.
As mesmas que hoje alardeiam ‘a explosão’ do dólar – e, ontem,
denunciavam o ‘populismo cambial’ e os malefícios, verdadeiros, do Real
sobrevalorizado.
Essas motivações exercitam sua sofreguidão cotidianamente na mesmice de
uma mídia que se esboroa sob o peso de sua própria irrelevância
jornalística.
A resposta da Prefeitura de São Paulo aos protestos não deve se pautar pelos uivos do jogral conservador.
Não se trata, tampouco, de conciliar com a violência gratuita.
Mas, sim, de encarar as manifestações como um mirante privilegiado para fixar uma nova referência na vida da cidade.
Qual seja, a de calafetar o abismo conservador que predominou
secularmente na relação entre a Prefeitura e os moradores da metrópole,
sobretudo a sua parcela mais pobre.
O trunfo do prefeito Fernando Haddad é ter sido eleito para isso.
Ele tem legitimidade para subtrair espaços à engrenagem opressora e
devolve-los a uma cidadania há muito alijada das decisões referentes ao
seu destino e ao destino do seu lugar.
Um salto de qualidade e intensidade na participação democrática na
gestão da cidade; essa é a resposta para a fornalha da insatisfação.
Da qual os incidentes de agora podem representar apenas um prenúncio pedagógico.
São Paulo é o produto mais representativo do capitalismo brasileiro.
Um labirinto de contradições, uma geringonça que emperra e se arrasta,
desperdiça energia e cospe gente enquanto tritura e refaz o seu concreto
de desigualdade.
Não há solução administrativa ou orçamentária imediata para o caos deliberadamente construído aqui.
A resposta à lógica que sequestrou a cidade dos seus cidadãos é
devolvê-la a eles fortalecendo os canais existentes e abrindo outros
novos, que dilatem o seu discernimento e a capacidade de erguer linhas
de passagem entre o presente e o futuro.
A alternativa é a anomia, eventualmente sacudida de gás lacrimogênio e pedradas.
(*) NR: a menção ao uso de
coquetéis molotov nas manifestações foi suprimida do texto por se tratar
de informação divulgada pelo aparato policial, sem comprovação até o
momento (12/06/2013; 23h51)
Saul LeblonNo Blog das Frases
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