O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala
da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma
vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito
porque você está "disponível". O fundamental não é garantir a opção de
um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou
que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação
compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma
política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a
cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da
redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O
fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O
fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à
demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento
de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e
precário.
O fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento
conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas
civilizatórias da sociedade brasileira.
O fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução
das desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em
escala socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo,
individualista ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum
espaço para a solidariedade.
O fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade
social ainda não veio acompanhada por uma esperada redução da violência
e da criminalidade, muito pelo contrário. E não há projeto nacional de
combate à violência que fuja do discurso meramente repressivo ou da
elegia à truculência policial.
O fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à
universidade por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e
arejamento dos indivíduos e da própria sociedade, e são reduzidos a uma
promessa de escada para a ascensão social via títulos e diplomas, ao
som de sertanejo universitário.
O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos
"libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar
ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos
sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas
urnas, a cada dois anos.
O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos
"sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de um
neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o
autoritarismo e o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações
estudantis estão entregues a um processo de burocratização,
aparelhamento e defesa de interesses paroquiais que os torna
refratários a uma participação dinâmica, entusiasmada e libertária.
O fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é
francamente conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que
é supostamente "progressista de coalizão". Mas entre a causa da
liberação da maconha e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a
internação. Entre as prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a
hipocrisia. Entre os índios e os agronegócio, ambos aliam-se aos
ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e a efervescência
libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre o estado
laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o
Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do muro,
calculando quem pode lhes render mais votos.
O fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar
os aqueles agentes de estado que torturaram e mataram durante da
ditadura acabou conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos
militares, muitos dos quais hoje se orgulham publicamente dos seus
crimes bárbaros – o que nos leva a crer que voltarão a cometê-los se
lhes for dada nova oportunidade.
O fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos
anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta.
Assustadoramente careta na política, nos costumes e nas liberdades
individuais se comparada com os sonhos libertários dos anos 1960, ou
mesmo com as esperanças democráticas dos anos 1980. Vivemos uma grande
ofensiva do coxismo: conservador nas ideias, conformado no dia-a-dia,
revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do Facebook.
O fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem
hoje qualquer nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da
molecada – seja nas universidades ou nas periferias – que não se
conforma com a falta de perspectivas minimamente interessantes dentro
dessa sociedade cada vez mais bundona, careta e medíocre.
Os mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a
juventude e os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da
sociedade, são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a
borracha nos "vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o
deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.
Acuados, os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos
de lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os
atos de "vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem
pavor em uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes
custar preciosos votos na próxima eleição.
Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as
ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo
diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de
qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham
autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou
beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de
vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das
safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e
não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com
quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos
filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de
digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.
Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele
sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde,
pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas
meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de
papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e
sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.
Não é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses
inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda
que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos,
utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas
reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de
sempre.
Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal
da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da
mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do
consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de
iluminação espiritual.
Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam
porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas
incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas
próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar.
No Advivo
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