ELEONORA DE LUCENA
Dez anos após sua implantação, o Bolsa Família mudou a vida nos rincões
mais pobres do país: o tradicional coronelismo perde força e a arraigada
cultura da resignação está sendo abalada.
A conclusão é da socióloga Walquiria Leão Rego, 67, que escreveu, com o
filósofo italiano Alessandro Pinzani, "Vozes do Bolsa Família" (Editora
Unesp, 248 págs., R$ 36).
Durante cinco anos, entre 2006 e 2011, a dupla realizou entrevistas com
os beneficiários do Bolsa Família e percorreu lugares como o Vale do
Jequitinhonha (MG), o sertão alagoano, o interior do Maranhão, Piauí e
Recife. Queriam investigar o "poder liberatório do dinheiro" provocado
pelo programa.
Aproveitando férias e folgas, eles pagaram do próprio bolso os custos
das viagens. Sem se preocupar com estatística, a pesquisa foi
qualitativa e baseada em entrevistas abertas.
Professora de teoria da cidadania na Unicamp, Rego defende que o Bolsa
Família "é o início de uma democratização real" do país. Nesta
entrevista, ela fala dos boatos que sacudiram o programa recentemente e
dos preconceitos que cercam a iniciativa: "Nossa elite é muito cruel",
afirma.
Folha - Como explicar o pânico recente no Bolsa Família? Qual o impacto do programa nas regiões onde a sra. pesquisou?
Walquiria Leão Rego - Enorme. Basta ver que um boato fez correr
um milhão de pessoas. Isso se espalha pelos radialistas de interior.
Elas [as pessoas] são muito frágeis. Certamente entraram em absoluto
desespero. Poderia ter gerado coisas até mais violentas. Foi de uma
crueldade desmesurada. Foi espalhado o pânico entre pessoas que não têm
defesa. Uma coisa foi a medida administrativa da CEF (Caixa Econômica
Federal). Outra coisa é o que a policia tem que descobrir: onde começou o
boato. Fiquei estupefata. Quem fez isso não tem nem compaixão. Nossa
elite é muito cruel. Não estou dizendo que foi a elite, porque seria uma
leviandade.
Como assim?
Tem uma crueldade no modo como as pessoas falam dos pobres. Daí aparecem
os adolescentes que esfaqueiam mendigos e queimam índios. Há uma
crueldade social, uma sociedade com desigualdades tão profundas e tão
antigas. Não se olha o outro como um concidadão, mas como se fosse uma
espécie de sub-humanidade. Certamente essa crueldade vem da escravidão.
Nenhum país tem mais de três séculos de escravidão impunemente.
Qual o impacto do Bolsa Família nas relações familiares?
Ocorreram transformações nelas mesmas. De repente se ganha uma certa
dignidade na vida, algo que nunca se teve, que é a regularidade de uma
renda. Se ganha uma segurança maior e respeitabilidade. Houve também um
impacto econômico e comercial muito grande. Elas são boas pagadoras e
aprenderam a gerir o dinheiro após dez anos de experiência. Não acho que
resolveu o problema. Mas é o início de uma democratização real, da
democratização da democracia brasileira. É inaceitável uma pessoa se
considerar um democrata e achar que não tenha nada a ver com um
concidadão que esteja ali caído na rua. Essa é uma questão pública da
maior importância.
O Bolsa Família deveria entrar na Constituição?
A constitucionalização do Bolsa Família precisava ser feita
urgentemente. E a renda tem que ser maior. Esse é um programa barato,
0,5% do PIB. Acho, também, que as pessoas têm direito à renda básica.
Tem que ser uma política de Estado, que nenhum governo possa dizer que
não tem mais recurso. Mas qualquer política distributiva mexe com
interesses poderosos.
A sra. poderia explicar melhor?
Isso é histórico. A elite brasileira acha que o Estado é para ela, que
não pode ter esse negócio de dar dinheiro para pobre. Além de o Bolsa
Família entrar na Constituição, é preciso ter outras políticas
complementares, políticas culturais específicas. É preciso ter uma
escola pensada para aquela população. É preciso ter outra televisão,
pois essa é a pior possível, não ajuda a desfazer preconceitos. É
preciso organizar um conjunto de políticas articuladas para formar
cidadãos.
A sra. quer dizer que a ascensão é só de consumidores?
As pessoas quando saem desse nível de pobreza não se transformam só em
consumidores. A gente se engana. Uma pesquisadora sobre o programa Luz
para Todos, no Vale do Jequitinhonha, perguntou para um senhor o que
mais o tinha impactado com a chegada da luz. A pesquisadora, com seu
preconceito de classe média, já estava pronta para escrever: fui comprar
uma televisão. Mas o senhor disse: 'A coisa que mais me impactou foi
ver pela primeira vez o rosto dos meus filhos dormindo; eu nunca tinha
visto'. Essa delicadeza... a gente se surpreende muito.
O que a surpreendeu na sua pesquisa?
Quando vi a alegria que sentiam de poder partilhar uma comida que era
deles, que não tinha sido pedida. Não tinham passado pela humilhação de
pedi-la; foram lá e compraram. Crianças que comeram macarrão com
salsicha pela primeira vez. É muito preconceituoso dizer que só querem
consumir. A distância entre nós é tão grande que a gente não pode
imaginar. A carência lá é tão absurda. Aprendi que pode ser uma grande
experiência tomar água gelada.
Li que a sra. teria apurado que o Bolsa Família, ao tornar as
mulheres mais independentes, estava provocando separações, uma revolução
feminina. Mas não encontrei isso no livro. O que é fato?
É só conhecer um pouco o país para saber que não poderia haver entre
essas mulheres uma revolução feminista. É difícil para elas mudar as
relações conjugais. Elas são mais autônomas com a Bolsa? São. Elas nunca
tiveram dinheiro e passaram a ter, são titulares do cartão, têm a
senha. Elas têm uma moralidade muito forte: compram primeiro a comida
para as crianças. Depois, se sobrar, compram colchão, televisão. É ainda
muito difícil falar da vida pessoal. Uma ou outra me disse que tinha
vontade de se separar. Há o problema de alcoolismo. Esses processos no
Brasil são muito longos. Em São Paulo é comum a separação; no sertão é
incomum. A família em muitos lugares é ampliada, com sogra, mãe, cunhado
vivendo muito próximos. Essa realidade não se desfaz.
Mas há indícios de mudança?
Indícios, sim. Certamente elas estão falando mais nesse assunto. Em
2006, não queriam falar de sentimentos privados. Em 2011, num povoado no
sertão de Alagoas, me disseram que tinha havido cinco casos de
separação. Perguntei as razões. Uma me disse: 'Aquela se apaixonou pelo
marido da vizinha'. Perguntei para outra. Ela disse: 'Pensando bem, acho
que a bolsa nos dá mais coragem'. Disso daí deduzir que há um movimento
feminista, meu deus do céu, é quase cruel. Não sei se dá para fazer
essa relação tão automática do Bolsa com a transformação delas em
mulheres mais independentes. Certamente são mais independentes, como
qualquer pessoa que não tinha nada e passa a ter uma renda. Um homem
também. Mas há censuras internas, tem a religião. As coisas são muito
mais espessas do que a gente imagina.
O machismo é muito forte?
Sim. E também dentro delas. Se o machismo é muito percebido em São
Paulo, imagina quando no chamado Brasil profundo. Lá, os padrões
familiares são muito rígidos. É comum se ouvir que a mulher saiu da
escola porque o pai disse que ela não precisava aprender. Elas se casam
muito cedo. Agora, como prevê a sociologia do dinheiro, elas estão muito
contentes pela regularidade, pela estabilidade, pelo fato de poderem
planejar minimamente a vida. Mas eu não avançaria numa hipótese de
revolução sexual.
O Bolsa Família mexeu com o coronelismo?
Sim, enfraqueceu o coronelismo. O dinheiro vem no nome dela, com uma
senha dela e é ela que vai ao banco; não tem que pedir para ninguém. É
muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao prefeito. Num
programa que envolve 54 milhões de pessoas, alguma coisa de vez em
quando [acontece]. Mas a fraude é quase zero. O cadastro único é muito
bem feito. Foi uma ação de Estado que enfraqueceu o coronelismo. Elas
aprenderam a usar o 0800 e vão para o telefone público ligar para
reclamar. Essa ideia de que é uma massa passiva de imbecis que não
reagem é preconceito puro.
E a questão eleitoral?
O coronel perdeu peso porque ela adquiriu uma liberdade que não tinha.
Não precisa ir ao prefeito. Pode pedir uma rua melhor, mas não comida,
que era por ai que o coronelismo funcionava. Há resíduos culturais. Ela
pode votar no prefeito da família tal, mas para presidente da República,
não.
Esses votos são do Lula?
São. Até 2011, quando terminei a pesquisa, eram. Quando me perguntam por
que Lula tem essa força, respondo: nunca paramos para estudar o peso da
fala testemunhal. Todos sabem que ele passou fome, que é um homem do
povo e que sabe o que é pobreza. A figura dele é muito forte. O lado
ruim é que seja muito personalizado. Mas, também, existe uma identidade
partidária, uma capilaridade do PT.
Há um argumento que diz que o Bolsa Família é como uma droga que torna o lulismo imbatível nas urnas. O que a sra. acha?
Isso é preconceito. A elite brasileira ignora o seu país e vai ficando
dura, insensível. Sente aquele povo como sendo uma sub-humanidade.
Imaginam que essas pessoas são idiotas. Por R$ 5 por mês eles compram
uma parabólica usada. Cheguei uma vez numa casa e eles estavam vendo TV
Senado. Perguntei o motivo. A resposta: 'A gente gosta porque tem alguma
coisa para aprender'.
No livro a sra. cita muitos casos de mulheres que fizeram laqueadura. Como é isso?
O SUS (Sistema Único de Saúde) está fazendo a pedido delas. É o sonho
maior. Aliás, outro preconceito é dizer que elas vão se encher de filhos
para aumentar o Bolsa Família. É supor que sejam imbecis. O grande
sonho é tomar a pílula ou fazer laqueadura.
A sra. afirma que é preconceito dizer que as pessoas vão para o Bolsa Família para não trabalhar. Por quê?
Nessas regiões não há emprego. Eles são chamados ocasionalmente para,
por exemplo, colher feijão. É um trabalho sem nenhum direito e ganham
menos que no Bolsa Família. Não há fábricas; só se vê terra cercada, com
muitos eucaliptos. Os homens do Vale do Jequitinhonha vêm trabalhar
aqui por salários aviltantes. Um fazendeiro disse para o meu marido que
não conseguia mais homens para trabalhar por causa do Bolsa Família. Mas
ele pagava R$ 20 por semana! O cara quer escravo. Paga uma miséria por
um trabalho duro de 12, 16 horas, não assina carteira, é autoritário, e
acha que as pessoas têm que se submeter a isso. E dizem que receber
dinheiro do Estado é uma vergonha.
Há vontade de deixar o Bolsa Família?
Elas gostariam de ter emprego, salário, carteira assinada, férias,
direitos. Há também uma pressão social. Ouvem dizer que estão
acomodadas. Uma pesquisa feita em Itaboraí, no Rio de Janeiro, diz que
lá elas têm vergonha de ter o cartão. São vistas como pobres coitadas
que dependem do governo para viver, que são incapazes, vagabundas. Como
em "Ralé", de Máximo Gorki, os pobres repetem a ideologia da elite. A
miséria é muito dura.
A sra. escreve que o Bolsa Família é o inicio da superação da cultura de resignação? Será?
A cultura da resignação foi muito estudada e é tema da literatura:
Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego. Ela tem
componente religioso: 'Deus quis assim'. E mescla elementos culturais: a
espera da chuva, as promessas. Essa cultura da resignação foi rompida
pelo Bolsa Família: a vida pode ser diferente, não é uma repetição. É a
hipótese que eu levanto. Aparece uma coisa nova: é possível e é bom ter
uma renda regular. É possível ter outra vida, não preciso ver meus
filhos morrerem de fome, como minha mãe e minha vó viam. Esse sentimento
de que o Brasil está vivendo uma coisa nova é muito real. Hoje se
encontram negras médicas, dentistas, por causa do ProUni (Universidade
para Todos). Depois de dez anos, o Bolsa Família tem mostrado que é
possível melhorar de vida, aprender coisas novas. Não tem mais o
'Fabiano' [personagem de "Vidas Secas"], a vida não é tão seca mais.
"VOZES DO BOLSA FAMÍLIA"
AUTOR Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani
EDITORA Editora Unesp
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