Filósofo contesta mitos sobre
“geração despolitizada”, propõe intensificar choque de valores e sugere
que é preciso hackear instituições conservadoras
Entrevista a Beatriz Macruz, Guilherme Zocchio e Rute Pina* | Imagem Racalavaca(flickr)
Por Antonio Martins
Que caracteriza o comportamento da
geração que, ao chegar à faixa dos vinte anos, começa a sondar seus
papéis políticos? Por que ela não adere a hábitos valorizados no
passado, como o engajamento num partido ou a leitura de um jornal
diário? Como expressa seus desejos de transformação, que parecem
desdobrar-se em múltiplas causas e campanhas, às vezes fragmentadas? Que
atitudes assumirá, no futuro próximo?
O filósofo Vladimir Safatle é um dos que
têm dedicado parte de seu tempo a refletir sobre estas questões.
Conhecido de muitos pelas colunas que publica em “Carta Capital” e
“Folha de S.Paulo”, ele é, muito mais que isso, um estudioso profundo da
herança (e presença…) da ditadura brasileira; e um pensador que, à
maneira de Slavoj Zizek, procura articular marxismo renovado com teoria
psicanalítica.
Suas reflexões têm produzido
interpretações instigantes sobre a nova geração. Ele rechaça, é claro,
os pontos de vista superficiais, segundo os quais o fato de não haver
“povo saindo às ruas” indicaria uma fase de despolitização. É preciso ir
mais fundo, examinar os valores que mobilizam e os que já não encantam;
a partir deles é que será possível fazer previsões de longo prazo.
Safatle anima-se, quando se dedica a
esta sondagem. Ele destaca que aspirações como ascender socialmente, ser
“bem-sucedido” segundo as regras e critérios do sistema, “fazer curso
de publicidade ou entrar no departamento de marketing” já não cativam.
Há sinais de desconforto social. Busca-se outros encantos e prazeres:
talvez, participar em redes de colaboração, contribuir para uma
distribuição menos desigual das riquezas produzidas por todos, construir
novas relações entre o ser humano e a natureza.
Mais: segundo o filósofo, já é possível
vislumbrar o momento em que desaparecerá a cultura do medo disseminada
pelo capitalismo após a queda do (mal-)chamado “socialismo real”. Está
em xeque, diz ele, a ideia de que “se quisermos grandes mudanças,
provocaremos catástrofes” e “só estaremos seguros no presente – por mais
que o detestemos e o julguemos insuportável”…
É natural, diz Safatle, que a nova
geração busque organizar-se de forma não-tradicional. “Os grandes
partidos já não têm força alguma para mobilizar as pessoas. E os
pequenos, cobram caro pela mobilização: um tipo de adesão que boa parte
dos jovens não está disposta a dar, pelas melhores razões. Eles não
querem virar instrumentos para uma lógica partidária”.
À falta de instrumentos eficazes para
expressar vontades coletivas, seria o caso de optar exclusivamente pela
micropolítica, ou pela ação à margem das instituições? Safatle pensa que
não. Ele rejeita fórmulas como a de John Holloway, que propõe uma
esquerda totalmente afastada do Estado. Alfineta: “se tal postura
prevalecer, os donos do poder irão atrapalhar todas as nossas tentativas
de mudar o mundo: não conseguiremos fazer nada”.
Mas propõe-se a sondar saídas. “Há algo
no meio do caminho [entre as lutas e as instituições], que você opera
pressionando de fora (…) O Estado, os partidos e o parlamento não vão
desaparecer. No entanto, você pode operar as estruturas políticas em
outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária, esvaziar atribuições
do parlamento, ativar processos de democracia direta”. Operar o que
outros pensadores chamam de “hackeamento das instituições”.
Safatle falou sobre todos estes temas
numa longa e preciosa entrevista, feita por três estudantes de
jornalismo da PUC – São Paulo. O site “Outras Palavras” a publicou e o
QTMD? reproduz.
Você consegue imaginar por que é
a geração da juventude de hoje, e não a que viveu ou ainda pegou o
resto da ditadura, que está promovendo os esculachos contra agentes do
regime militar?
Safatle: Porque esta é
uma das gerações mais politizadas que tivemos nos últimos trinta anos.
Contrariamente ao que algumas pessoas querem nos fazer acreditar, não
vivemos num processo irreversível de despolitização juvenil. Acredito
exatamente no contrário. Acho que a geração que hoje tem vinte, vinte e
poucos anos, é muito mais politizada do que a minha, de pessoas que hoje
têm quase quarenta. A minha era de pessoas que tinham como maiores
preocupações ascender socialmente no mercado, fazer curso de
publicidade, entrar no departamento de marketing… As preocupações
políticas eram nulas. Existia todo um discurso de que as ideologias
haviam terminado, havíamos chegado ao fim da história e não havia outra
forma de vida possível, a não ser a institucionalizada pelas sociedades
capitalistas avançadas.
A atual, é uma geração que vive a
experiência da crise social, de uma crise econômica mundial (mesmo que o
Brasil seja um caso à parte). Há um esgotamento da confiança na
democracia parlamentar, a ascensão da extrema direita, o retorno do
racismo e da xenofobia: são questões de profunda natureza política. É
muito normal que uma parcela de jovens, no Brasil, volte-se para o que
resta da ditadura, seu legado, a impossibilidade de saber que há um
acerto de contas com os crimes do passado; e que faça mobilizações como
as que começamos a enxergar.
Isso também demonstra algo interessante:
as sociedades nunca esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio armênio,
há mais de cem anos. As experiências das ditaduras podem ser
simbolizadas, quando você encontra uma inscrição simbólica adequada para
este tipo de experiência. Como isso não existiu no Brasil, dá-se um
fenômeno descrito por Lacan: o que é expulso do simbólico, retorna no
real, e de forma violenta. Como nunca tivemos uma inscrição simbólica da
violência da ditadura, ela volta agora sob a forma do desprezo, que
várias parcelas da juventude têm a figuras que cometeram crimes contra a
humanidade. Estamos falando do uso do aparato do Estado, da tortura,
assassinato, estupros, ocultações de cadáver e coisas desta natureza.
Mas esta manifestação civil não chega em uma instância oficial do Estado. Você acha que ela também pode contribuir para que surja um debate sobre o tema?
Mas esta manifestação civil não chega em uma instância oficial do Estado. Você acha que ela também pode contribuir para que surja um debate sobre o tema?
Safatle: Acho que
demonstra claramente a existência de um desconforto social – e é o
primeiro passo. O argumento de quem quer esquecer a qualquer custo é que
a sociedade já se pacificou e reconciliou, não haveria nenhuma razão de
o Estado intervir em um processo resolvido. Essas manifestações
demonstram que tudo isso é falso, uma mentira, a reconciliação foi
extorquida. A própria Lei da Anistia é um exemplo claríssimo: foi votada
só por membros do partido do governo. A oposição não se reconhecia de
no projeto. Que tipo de acerto é esse? Conseguiram extorquir a
reconciliação, e querem fazer passar a ideia que ela resultou de ampla
negociação por debate. Sem contar que as instâncias de justiça de
transição, no mundo inteiro, são completamente contrárias à de uma
anistia autoconcedida. Os militares concederam anistia para si mesmos.
Isso é, em qualquer situação, uma aberração jurídica.
Você acha que o fato de isso
aparecer no momento que o estado brasileiro está se organizando para
instaurar uma Comissão da Verdade revela um desconforto?
Safatle: É uma maneira
de pressionar o debate, tentar impedir que a Comissão da Verdade seja
uma farsa, como tudo indica que pode ocorrer. É uma comissão esvaziada,
tem apenas sete membros. Vai operar sem poder de mandar material para a
Justiça, pois, a princípio, sua função é descobrir o que realmente
aconteceu. Essa é uma questão importantíssima: não sabemos o que
aconteceu. “Existem quatrocentos e poucos mortos”. Quem disse que foram
quatrocentos e poucos? Isso foi o que a gente conseguiu descobrir.
Num processo de Comissão da Verdade, os
crimes vão aparecendo. Quem nos garante que não aconteceu no Brasil algo
como na Argentina: sequestro de crianças, essa brutalidade que é, para
mim, o pior dos crimes. Entrega-se os filhos dos torturados para os
torturadores. Corta-se a possibilidade de memória da dor. Esse lado
maquiavélico da ditadura argentina coincide com a pior experiência do
nazismo. Primo Levi dizia que a pior frase que ouvira, quando estava no
campo de concentração, era a de um oficial nazista: “tudo o que a gente
fez é tão inacreditável, que ninguém vai ouvir ou acreditar no que você
disser. E a gente vai apagar todos os rastros”.
Você percebe uma mudança na forma, na estética dos esculachos para os movimentos na época da ditadura?
Safatle: Com certeza.
Você tem a identificação clara de um indivíduo e uma pressão, um
movimento claro de desprezo. É um recado: “você pode conseguir segurar
algumas coisas na imprensa e escapar de tudo, menos do o desprezo
social”. É completamente distinto das manifestações que ocorreram no
período militar, de luta contra um aparato repressivo. Temos agora
consciência de como o reconhecimento social é central na vida política.
Retira-se o reconhecimento social ao dizer: “Você não pode ser um
cidadão de plenos direitos. Você é um criminoso”.
Você enxerga uma relação entre a mudança de ativismo no Brasil e o movimento Occupy, que propõe uma nova forma de se manifestar?
Safatle: Há algo em
comum: todos estes movimentos são feitos à margem de partidos. As
estruturas partidárias – pelo menos as grandes – não têm mais força
alguma parra mobilizar as pessoas. E os pequenos partidos cobram caro
pela mobilização: um tipo de adesão que acredito que boa parte dos
jovens não está disposta a dar, pelas melhores razões. Eles não querem
virar instrumentos para uma lógica partidária. Essas mobilizações se
fazem em torno de temas: você se organiza para certos objetivos, cria
estruturas ou fóruns ligados a eles; depois, eles se dissolvem. É bem
provável que isso seja cada vez mais utilizado.
O Occupy forneceu um modelo para este
tipo de processo. Mas… o que eles conseguiram? Francamente, não é esta a
questão. O ponto de vista por trás de tal pergunta é muito rasteiro. “ –
Deu um resultado logo em seguida? – Não. – Então, não deu resultado
algum”.
Não faz sentido: às vezes os resultados
precisam de anos. Um primeiro movimento produz um desdobramento aqui,
outro ali… Lá na frente, anos depois, você vai enxergar resultados mais
concretos. Essa visão de ato e reflexo, bate aqui e vê se acontece
alguma coisa ali, é a antipolítica por excelência. Acho que os
movimentos foram muito bem-sucedidos. Eles tensionaram um acordo que
parecia intocável, forneceram o modelo de um processo de mobilização e
isso não terminou.
No Chile há, até hoje, grandes
manifestações sobre a educação, 400 mil pessoas nas ruas contra o
governo, por uma escola pública de qualidade. O processo é mesmo lento,
ninguém ache que vai conseguir modificar o tabuleiro do xadrez do debate
político de um dia para a noite, mas toda grande caminhada começa com
um passo – e ele foi dado.
Penso numa frase de Deleuze, segundo a qual os jovens necessitam muito ser motivados. Nossa geração pede isso. Você não acha que falta uma noção maior do que tudo isso representa?
Penso numa frase de Deleuze, segundo a qual os jovens necessitam muito ser motivados. Nossa geração pede isso. Você não acha que falta uma noção maior do que tudo isso representa?
Safatle: Isso é muito
normal, porque tivemos um esgotamento das grandes explicações. Não
porque estivessem completamente erradas, mas estavam parcialmente
erradas. Não deram conta de uma série de processos ocorridos nos últimos
vinte, trinta anos. É normal que você precise reconstruí-las agora, em
novas bases. Aquilo que um dia Jean-François Lyotard chamou das grandes
metanarrativas. Tem um lado certo e um errado, da crítica que fazia. Ele
disse que as grandes metanarrativas, a ascensão proletária, o movimento
revolucionário, a teleologia histórica, isso tudo era um grande
equívoco.
Eu diria que não foi um pequeno
equívoco. Você não pode abandonar perspectivas de largo desenvolvimento
histórico. Do contrário, os acontecimentos ficam completamente opacos,
você torna-se incapaz de enxergá-los. Os fatos parecem vir no ritmo do
acaso, da completa contingência.
No entanto, existe o espaço da
contingência. Ou seja, há acontecimentos completamente imprevisíveis,
que exigem uma reformulação ampla dessa perspectiva de análise
histórica. Isso não aconteceu. Eu diria que uma tarefa atual é
compreender o lugar da contingência no interior de uma dinâmica onde a
necessidade vai se construindo. Ninguém enxerga muito bem o que está
acontecendo, isso só é possível depois. Em certos momentos da história,
algumas pessoas conseguem mobilizar mais e dizer: “vejam, existe uma
abertura, um desfiladeiro. A gente consegue passar por aqui”.
Falta acreditar que os processos abertos
não necessariamente terminam em catástrofe. A gente absorveu muito essa
ideia: se quisermos grandes mudanças, provocaremos catástrofes. Segundo
tal lógica, só estaríamos seguros no presente – por mais que o
detestemos e o julguemos insuportável. Espero que esse raciocínio
desapareça o mais rápido possível. Ele expressa a cultura do medo: você
não projeta nada para frente. Você se rende ao presente.
Nos momentos de crise, há tanto busca de novos referenciais, quanto retorno do autoritarismo. Num país como o Brasil, em que as correntes conservadoras são muito fortes, não há risco de que esta segunda posição prevaleça?
Nos momentos de crise, há tanto busca de novos referenciais, quanto retorno do autoritarismo. Num país como o Brasil, em que as correntes conservadoras são muito fortes, não há risco de que esta segunda posição prevaleça?
Safatle: Essa é uma
luta que existe no Brasil hoje. Nosso debate político é hoje cultural.
Os projetos econômicos são mais ou menos iguais. Existem distinções, mas
não são enormes, reais. Ninguém prega grandes reformas. Nenhum partido
importante sugere: “vamos fazer uma democracia plebiscitária”. Há um
grande consenso.
Onde está o debate político? Está no
campo da cultura, dos costumes, dos hábitos. O aborto virou um dos temas
mais importantes do Brasil. Casamento homossexual, todos os outros
problemas ligados à modernização dos costumes.
Isso tem um lado bom. A gente está
brigando por formas de vida distintas. Mas isso também demonstra que o
debate centrado na cultura sempre tocou muito mais os jovens e sempre é
um debate da esquerda. Hoje, há uma direita cultural, um pensamento
cultural de direita forte, conservador, que consegue mobilizar camadas
da juventude. Julgo isso algo muito grave, mas lembro que é
característica de todos os processos históricos ricos: a juventude
dividindo-se ao meio. Há uma ala conservadora, outra progressista. Na
época da ditadura militar, esse processo era muito claro.
A França viveu uma eleição agora. Um
partido de extrema-direita ficou em terceiro lugar – e em primeiro, nos
votos dos jovens entre 18 e 25 anos. Por que? Eles trazem questões
culturais: imigração; nossos valores; nossa forma de vida; nossa
religião contra a religião “atrasada” dos “outros. São debates que
estão, de uma maneira ou de outra, chegando no Brasil. A gente precisa
se preparar para isso, também. Para uma divisão que vai ocorrer, de
maneira cada vez mais forte. Não há como escapar dela.
Você conseguiria apontar quais são alguns agentes dessa direita cultural?
Você conseguiria apontar quais são alguns agentes dessa direita cultural?
Safatle: Existe uma
proliferação de blogues de extrema-direita no Brasil, que a juventude
lê. São colunistas de jornal, que se assumem claramente como
conservadores. Isso não deve ser negligenciado: é um fenômeno que veio
para ficar.
Significa o quê? Que o debate cultural
deve ser feito com toda a força. A discussão sobre a memória é um
aspecto decisivo. Que tipo de sociedade queremos? Uma sociedade que
acredita que, esquecendo crimes do passado, você tem um presente melhor?
Uma sociedade que tem medo de fazer memória? Onde você publica um
artigo sobre a ditadura na internet, e surgem 150 pessoas comentando
como era fantástica a vida naquele tempo, como pelo menos não tinha
corrupção?
Há um preceito liberal que se chama
“Direito de Resistência”. Não está em Lênin, mas em Locke, que era a
favor do tiranicídio. Dizia: “se um tirano usurpa os seus direitos, as
liberdades individuais e as liberdades sociais, ele merece a morte”.
Isso está também no Rousseau – ou seja, na tradição liberal do
pensamento político. Se algumas pessoas têm a coragem de usar a famosa
teoria dos dois demônios,segundo a qual havia terroristas de esquerda e
de direita, elas colocam-se aquém da perspectiva liberal de política.
Que tipo de sociedade essas pessoas
procuram realizar no presente? Penso que não é mais possível admitir
mais esse tipo de situação. Eles querem dizer que, mesmo numa ditadura, a
violência contra o Estado não é aceitável. Para mim, é uma das
proposições mais antidemocráticas que se possa imaginar. Na década de
1920, greve era um crime. Mas foi graças a esse crime que os direitos
trabalhistas foram universalizados.
Uma esquerda mais clássica,
organizada em partidos, fala numa disputa entre hegemonia e
contra-hegemonia – e sugere disputar instituições como a mídia, o
governo, o parlamento. Este tipo de opinião pode enfraquecer os
movimentos da juventude que procuram uma saída não-institucional e novas
formas de política?
Safatle: Acho que não –
e é um ótimo tema. Há momentos em que você precisa saber como se
organizar institucionalmente. A Primavera Árabe demonstra isso
claramente. Começou, sempre, com movimentos jovens: na Tunísia,
diplomados desempregados; no Egito, o movimento 6 de Abril, composto por
jovens de várias tendências políticas. Conseguiram resultados imediatos
mas, na hora de gerir o processo, não existia uma estrutura
institucional, uma organização. Quem colheu todos os frutos do processo
foram os partidos islâmicos, mais organizados e com capilaridade
popular.
Qual o modelo de organização para grupos
que não admitem o partido como a figura clássica de organização? Uma
nova estrutura política? Frentes mais flexíveis? É algo que
precisaremos, em algum momento, responder. Do contrário, todas as
estruturas institucionais serão dominadas por aqueles que já sabem
operá-las. E elas não vão desparecer. O Estado, as eleições, os
sindicatos não vão desaparecer.
Novas instituições poderiam
superar as que existem agora? Poderíamos imaginar a fundação de um novo
Estado e uma nova forma sociedade? Ou é muita pretensão?
Safatle: Sempre fui
firmemente contrário ao slogan “mudar o mundo sem tomar o poder”, de
John Holloway. Os donos do poder agradecem: se tal postura prevalecer,
irão atrapalhar todas as nossas tentativas de mudar o mundo: não
conseguiremos fazer nada.
Não existe política completamente à
margem da estrutura institucional, da mesma maneira como não se pode
fazê-la só dentro das instituições. Há uma região limítrofe, que é
necessário saber operar. Precisamos ir além do pensamento binário, do
“ou totalmente fora, ou totalmente dentro”. Há algo no meio do caminho,
que você opera pressionando de fora. Isso, ainda não conseguiu
constituir. Só há um grupo que conseguiu fazer isso: os lobistas. Os
lobbies estão semi-institucionalizados. Operam de fora, forçando a
estrutura institucional. É necessário uma espécie de lobby popular, que
seja contraponto ao lobby econômico.
Pensei no texto “O que é ser
contemporâneo?”, do Giorgio Agamben. Ele sugere reconhecer a época em
que vivemos, assumir que ela tem instituições, e ao mesmo tempo negá-la,
querer deixá-la. É isso que inspira a juventude?
Safatle: Sim, com
certeza existe essa região limítrofe que é necessário saber operar.
Volto a insistir: o Estado, os partidos e o parlamento não vão
desparecer. No entanto, você pode operar as estruturas políticas em
outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária, esvaziar atribuições
do parlamento, transferir decisões para a população, ativando processos
de democracia direta.
Qual é a estratégia de desmobilização? É
dizer: “ou você está dentro do Estado de Direito, ou você está fora; ou
aceita a estrutura institucional tal como ela é hoje, ou está
completamente fora e portanto faz apologia da ditadura”. Não existe
isso.
Você pode perfeitamente admitir que
algumas estruturas vão continuar e, ao mesmo tempo, construir processos
de transferência direta de poder. Esse me parece o grande desafio ao
pensamento político atual. Como a gente constrói, como dá figura para as
demandas de democracia real? Há muitos exemplos. Um deles: a Islândia
foi um dos primeiros países a mergulhar na crise econômica europeia.
Bancos islandeses tomaram dinheiro emprestado nos Países Baixos e
Inglaterra. Quando quebraram, a Inglaterra e os Países Baixos
apresentaram a conta ao governo islandês: os bancos eram privados, mas a
conta foi para o Estado. O parlamento se dobrou, aceitando a conta
bilionária. A população – pequena, em torno de 250 mil habitantes –
teria de pagar durante cinquenta anos a dívida dos bancos.
Bem, havia um presidente, um pouco mais
sensato, que lembrou uma regra da Constituição islandesa, segundo a qual
os presidentes têm o direito de consultar a sociedade, antes de
promulgar leis. Convocou-se um plebiscito: o povo foi chamado a votar se
queria ou não pagar a dívida. Pode-se imaginar o terrorismo: em caso de
não-pagamento, dizia-se, o país iria converter-se em pária
internacional.
Mas o povo disse não. Hoje, a Islândia
está melhor do que todos os outros países que entraram na crise à mesma
época: Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda. Isso ensina que é possível
politizar a economia, tirar poderes indevidos. Alegar que um parlamento
sozinho não pode decidir uma questão tão central como essa. Um
parlamento é composto de pessoas que têm as eleições pagas por bancos… O
parlamentar deve para o banco: há uma nova eleição daqui a quatro anos e
ele sabe que, se votar contra, não tem mais financiamento, não vai ser
reeleito. Como uma pessoa dessas pode tomar esse tipo de decisão?
Mas no caso da Espanha, por exemplo, os indignados não conseguiram construir alternativas como essa. O movimento caminha nessa direção?
Mas no caso da Espanha, por exemplo, os indignados não conseguiram construir alternativas como essa. O movimento caminha nessa direção?
Safatle: Na Islândia,
já havia o mecanismo institucional. Tiveram a sorte de contar com um
presidente um pouco mais sensato, que deu realidade ao processo. Mas é
um dado extremamente interessante, porque pode ser transformado em
bandeira: “quero que na Espanha a lei islandesa seja aplicada”. É
possível fazer o mesmo em várias outras situações. Você tensiona o
debate. Os conservadores reagirão: “a população não pode decidir sobre
essas coisas, são muito complexas, só tecnocratas têm que decidir”.
“Mas, então, fala, fala na nossa frente:
só tecnocrata de banco vai decidir o que vão fazer com o nosso
dinheiro?” Vamos ver o que vai acontecer. Este é um recurso muito
importante: você obriga o poder a falar os seus absurdos, que ele
normalmente não tematiza. Todo mundo sabe que quem decide é tecnocrata,
mas ninguém fala. Quando certas coisas são ditas, algo acontece, mesmo
que exista um acordo tácito entre as pessoas. Por isso, uma questão
política central é obrigar o poder a falar, colocá-lo contra a parede.
*Beatriz Macruz, Guilherme Zocchio e Rute Pina são estudantes de jornalismo da PUC-SP e colaboradores do site “Outras Palavras”.
Também do Blog Quem tem medo da democracia?
Um comentário:
É sempre bom notar que o Safatle é um acólito do PSOL, convidado para dar palestras nas 'acampadas' do Ocupa (nome que o partido pegou emprestado do Occupywallstreet). Eles organizam os atos para poder alavancar um partido que não tem ainda toda a força que gostariam, mesmo tendo 'ocupado' diretórios acadêmicos de várias universidades federais e alguns sindicatos com muitos filiados ou muita grana (Sindisprev e Petroleiros, p.ex.).
O governo não tem que ter medo do povo e vice-versa. Políticas de medo são, todas elas, ruins. Em seu último artigo na Folha (sim, ele escreve pra Folha!) ele fala em 'medo das massas' e cita um dado equivocado sobre a Islândia, que segue com a constituição antiga.
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